A serenidade das primeiras cenas de “Aftersun” enganam. Num quarto de hotel, um pai e sua filha trocam impressões sobre a relação dos dois, a menina, claro, querendo disfarçar a verdura de seus nove anos, julgando aquele homem de suaves três décadas um ancião um século mais idoso, certamente por poder observar de muito perto suas atávicas manias, seus anseios malogrados, seu rosto de invencível melancolia frente à lembrança de um casamento recém-desfeito, o que parece ter extravasado para todos os aspectos de sua vida, como o chorume que emana de um corpo sem vida.
Charlotte Wells acessa suas próprias memórias ao traçar o perfil de Calum e Sophie, os infelizes protagonistas de seu belo filme, e então se compreende de onde vem toda aquela coisa tão autêntica, destrutiva e terapêutica como o fogo, em que grande parte do público se reconhece de imediato. Aos dezesseis anos, a diretora-roteirista perdeu o pai, e embora já se ressentisse de sua ausência, uma vez que morava em Nova York e ele em Londres, esse outro afastamento, compulsório e definitivo, a dilacerou.
Seu texto equilibra passagens assumidamente doídas com lances nos quais se vislumbra o clarão de esperança que permitiria aos dois sonhar com dias melhores, unindo poesia e técnica para contar a história comum de gente comum. E é assim que seu trabalho emociona e ampara.
Na Turquia, Calum e Sophie aproveitam um dos raros momentos que têm para ficar juntos, num resort barato, e enquanto isso, Wells dá algumas pistas quanto ao verdadeiro estado da alma desse homem aflito, acendendo um cigarro depois de intermináveis minutos, por causa do gesso no braço. A reserva incluía duas camas, mas um equívoco da gerência entregou-lhes um aposento com um leito só, e ele nem cogita dormirem os dois sobre o mesmo colchão, quiçá uma exigência da cada vez mais neurastênica patrulha do politicamente correto.
O texto não se rende por completo, e na cena a seguir, numa manhã de sol, eles estão no parque aquático, Calum encomendando drinques no bar ao passo que Sophie se diverte no fliperama, interagindo com um garoto de forma um tanto ambivalente, como se o quisesse seduzir, mas sem muitos trejeitos, apenas tentando chamar sua atenção e despertar sua confiança. Paul Mescal e Frankie Corio vão se revezando na preferência de quem assiste, um por vez e ao mesmo tempo, impondo-nos suas mágoas tão particulares.
Sophie, como Wells, apesar do empenho, não é capaz de disfarçar a tristeza pelo fim do casamento dos pais, e evidencia que viver com a mãe não é exatamente um mar de rosas. Calum, por seu turno, não obstante condescenda com as queixas da filha, não sabe que rumo dar à própria história, elucubrando sobre a inauguração de um café com um tal de Keith, sem convencer sequer a si mesmo.
“Aftersun” toma o partido da menina desde sempre, mas quando Celia Rowlson-Hall assume a personagem, fica patente a urgência de Wells de defender sua perspectiva sobre os acontecimentos, os reais e os tão verídicos quanto possível para uma criança em tenra idade. A fotografia Gregory Oke ressalta essa aura onírica do longa, a exemplo do trecho em que a Sophie adulta volta duas décadas no tempo e vê Calum completamente perdido, absorto numa espécie de transe hipnótico numa pista de dança lotada, se contorcendo ao som da música sob luzes estroboscópicas que fustigam-no como relâmpagos. Pensei em meus pais, também demasiado jovens para assumir um compromisso com qualquer pessoa além de si mesmos, e tive-lhes pena, como já me ocorrera em outras circunstâncias ao longo da vida. Deve ser isso o que nos espera depois do sol.
Filme: Aftersun
Direção: Charlotte Wells
Ano: 2022
Gêneros: Drama/Coming-of-age
Nota: 9/10