Obra-prima de Chris Weitz na Netflix vale cada centésimo de segundo do seu tempo Divulgação / Metro-Goldwyn-Mayer

Obra-prima de Chris Weitz na Netflix vale cada centésimo de segundo do seu tempo

Para Hannah Arendt (1906-1975), a capacidade de um indivíduo dito normal se sujeitar a ordens tresloucadas de um lunático e, assim, contribuir para um dos cenários mais monstruosos da História tinha a natureza de um verdadeiro enigma que, em algum grau, a fascinava. Baseando-se no roteiro de Matthew Orton, Chris Weitz verte as iluminações arendtianas para o cinema em “Operação Final”, e chega a novas inferências acerca de um dos grandes escândalos por trás do maior opróbrio já perpetrado pelo homem.

A filósofa alemã (e judia), uma das intelectuais de maior prestígio no mundo ainda hoje — passados quase cinquenta anos de sua morte —, tinha de averiguar o que levara um homem comum a se tornar um dos maiores expoentes do nazismo na Alemanha de Adolf Hitler (1889-1945). Despachara-se para Jerusalém, a fim de acompanhar o julgamento do facínora, mas concluíra que não havia nada em especial a ser dito: Adolf Eichmann (1906-1962) era mesmo um sujeito como outro qualquer, com aspirações e necessidades de um sujeito como qualquer outro, cuja principal distinção se encontrava no aspecto bastante peculiar de seu trabalho e em quem o chefiava. 

Arendt levou tudo o que apurara às páginas de um de seus livros, todos clássicos. “Eichmann em Jerusalém” foi publicado um ano depois do veredito que condenou o médico à forca em 1962. Nele, a filósofa apresenta exatamente o que movia Eichmann, a banalidade do mal, conceito que ganhou o mundo, ainda que repetido da boca para fora, sem que se saiba ao certo a que se está tentando aludir.

O braço-direito de Hitler era um funcionário exemplar, que apenas executava comandos na intenção de revestir seu ofício da excelência que o caracterizava — e, por natural, para sobreviver. Ao se dar conta de que a aventura do totalitarismo germânico fazia água, Eichmann, num lance realmente cinematográfico, consegue fugir e se socorre de um outro nome para recomeçar do zero na Argentina.

Vai levando a vida sem maiores sobressaltos, tampouco sem padecer de eventuais crises de consciência — e aí é que está o fulcro da questão —, até que sua figura arredia é notada por uma equipe de pesquisadores judeus. Um rapto é logo sugerido pelo Mossad, o serviço secreto de Israel, e o Shin Bet, responsável pela inteligência militar do país, para onde é encaminhado.

Weitz opta por dar a merecida ênfase a Peter Zvi Malkin (1927-2005), o agente do Mossad responsável por chefiar a equipe que botou Eichmann na cadeia. O enredo remonta a 1954, apresentando Malkin, interpretado com denodo por Oscar Isaac, numa busca na casa de um suposto membro do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, foragido da justiça tedesca na Áustria. O homem tenta escapar, mas é morto a tiros, e na sequência se vê que era um nazista, dada a suástica na capa de alguns livros, mas não o nazista que procuravam.

O plano talvez não vingue, e como se não fosse o bastante, Malkin é atormentado por imagens em flashbacks onde se vê uma mulher sendo intimidada por militares alemães numa floresta. Não se sabe imediatamente de quem se trata nem qual a relação que o policial teria com ela, mas à medida que a história avança, o público é capaz de supor o que pode ligá-los.

Numa referência metalinguística, o diretor situa alguns personagens num cinema argentino que exibe “Imitação da Vida” (1959), de Douglas Sirk (1897-1987). Sylvia, de Haley Lu Richardson, se impressiona com a vividez da cena em que Frankie, de Troy Donahue (1936-2001), delata Sarah Jane, de Susan Kohner, por ser uma afrodescendente que se identica como branca. Embora ligeiramente digressivo, o segmento é de grande importância a fim de se absorver o que “Operação Final” passa a abordar com mais veemência.

Mesmo cerca de década e meia de acabada a guerra, o antissemitismo, o racismo e o neonazismo ainda pulsam na sociedade, mesmo num país intelectualmente arejado feito a Argentina. Uma curiosidade de bastidor, plena de sentido e emoção, é que Susan Kohner é a mãe de Weitz e, aos 87 anos, recebe a homenagem da melhor maneira: viva e ainda combatendo uma das mais daninhas pragas da civilização.

O Adolf Eichmann de Ben Kingsley é um antagonista à altura do brilho de Oscar Isaac. Os personagens são obrigados a estreitar relações, uma vez que leva algum tempo até que as autoridades argentinas concordem com a evasão do nazista de seu território. Eichmann é mantido em endereço secreto até que se resolvam trâmites legais eminentemente burocráticos, crítica pontual e equilibrada de Weitz, e nesse meio-tempo, o agente explica a seu cativo que só poderão extraditá-lo se ele consentir a assinatura de um documento formal, o que ele, claro, não pensa fazer.

Este é o ápice do trabalho de Weitz, Isaac e Kingsley; a sequência em que Malkin tira a barba de Eichmann, usando uma navalha afiada com esmero, é vigorosa o suficiente para estear todo o filme, ao passo que a condução para o desfecho se anuncia como se pode presumir.

São delicadezas assim, levadas à tela observando-se detalhes essenciais a exemplo da fotografia bem-cuidada de Javier Aguirresarobe, que elevam produções como “Operação Final” à alta esfera das legítimas obras de arte da indústria cinematográfica, cada vez mais raras. No que concerne à dureza da vida como ela é — e deveria ser sempre —, Adolf Eichmann fora sentenciado à pena capital, por enforcamento, na presença de membros da família de suas vítimas, em 1° de junho de 1962. A apreciação de seu caso se estendeu por catorze meses.


Filme: Operação Final
Direção: Chris Weitz
Ano: 2018
Gênero: Biografia/Drama/Guerra
Nota: 9/10