O filme mais perturbador e cheio de reviravoltas do catálogo da Netflix Divulgação / Netflix

O filme mais perturbador e cheio de reviravoltas do catálogo da Netflix

Alguns filmes têm o dom de corromper o postulado dos postulados em qualquer narrativa e se organizam sem a necessidade de um eixo certo, e por conseguinte não se pode cravar sem ampla margem de erro que conflito supera outro em importância, profundidade dramática, vastidão de ideias, calor das emoções. Ao passo que uma trama vai adquirindo musculatura, já irrompe outra em tudo disposta a tomar-lhe os holofotes, e por sua vez uma terceira já está em gestação, cada qual abrindo uma trilha por onde o enredo vai caminhar.

“À Espreita do Mal”, na Netflix, é uma história em que a ação se desnovela sob enfoques variados, tudo ao mesmo tempo, e ninguém se perde, se desorienta e muito menos se entedia. Um tratamento inicial prioriza o sumiço de um garoto de doze anos, modalidade criminosa perpetrada com frequência cada vez maior e em velocidade espantosa, sobretudo numa cidadezinha pacata, mas que já vivera dias de terror antes. Arguto, o diretor Adam Randall atenta para a grande oportunidade que aos poucos vai surgindo e saca do roteiro de Devon Graye a figura do detetive Greg Harper, nomeado pelo departamento de polícia local para investigar o caso. Mas o personagem de Jon Tenney não é exatamente o homem adequado para essa missão.

O descompasso na relação de Harper e Jackie é o argumento de que Randall precisava a fim de esconder os grandes mistérios do longa. A psicanalista Jackie, vivida por Helen Hunt, confessou um adultério recente, e o casal, junto com o filho, Connor, de Judah Lewis, até parece dedicado a superar o trauma, mas não tem ideia de como fazê-lo. À escalada de tensão são acrescidos níveis mais altos conforme episódios à primeira vista desconexos tornam-se parte da rotina dos Harper.

Um telefonema de Jackie libera no marido fúria tão desproporcional que ele acaba lançando o aparelho contra a janela do quarto — é esse o ponto de desajuste em que está seu casamento. O texto de Graye insinua que ele solicita o reparo da avaria e quando o vidraceiro aparece, já não está mais em casa. O homem faz o serviço e estava para sair quando Jackie, que havia voltado, cruza com sua figura ameaçadora no corredor. Ele se identifica e diz que sua entrada no imóvel fora autorizada por uma garota, que se apresentou como filha do casal — ou seja, conclui-se que o detetive pagou a infidelidade da terapeuta com a mesma moeda.

O trabalho de Graye, aliado à direção acurada de Randall, nunca prescinde da sutileza e o verbo que eles conjugam de maneira mais categórica, até dada altura, é insinuar. A brincadeira que o espectador faz consigo mesmo, de erigir possíveis cenários que expliquem o desdobramento dos enigmas que se apossam de “À Espreita do Mal”, só não é mais estimulante porque não vence a barreira da imaginação, e o que se confabula é muito mais perturbador do que aquilo que de fato se vê.

Tivesse o filme embarcado nessa de bota e espora, valendo-se do efeito Rashomon no intuito de apresentar as versões de cada personagem para as situações nonsense que se espraiam por todo o enredo, o mote central seria muito mais bem compreendido, e a história não ficaria tão falta de sentido em passagens nevrálgicas. A estratégia de Randall não se perde por completo, no entanto, graças ao elenco carismático, que dispõe de elementos técnicos essenciais num trabalho dessa natureza.

O diretor de fotografia Philipp Blaubach sabe perfeitamente quando é hora de subir a luz, orientando o público sobre a perspectiva de resolução de uma das vertentes do atrito entre Harper e Jackie, e nos lances em que apela para tons sombrios, como o azul-cobalto ou mesmo o negro intenso, quase absoluto, salienta que algum vácuo permanecerá.

Sob o ângulo da dramaturgia, Hunt, que dominara o filme até pouco mais da metade, é forçada a ceder espaço, em especial para Libe Barer e Owen Teague. Os dois surgem para pôr termo ao primeiro mistério, tornando-se onipresentes e permanecendo até a conclusão, instante em que vem a lume a grande reviravolta. O arco dramático dos dois, lamentavelmente, fica comprometido — há sequências em que Randall parece querer claramente acelerar um pouco —, mas Mindy e Alec chegam bem a tempo de abastecer a história com novas discussões. É por meio deles que o público toma pé da miséria emocional que se esconde nos muitos cômodos daquela casa, tão luxuosa que faz com que pareçam crianças num parque de diversões. Essas cenas, silenciosas e reveladoras, servem para dar outras nuanças e outros caimentos à toxicidade que se alastra sobre qualquer um que ouse habitar o palacete, os dois intrusos, inclusive.

O casal de marginais toma parte no cotidiano dos Harper e a decisão do anarquista Alec quanto a interferir diretamente nas vidas dos anfitriões — embora tenha sido Mindy a desencadear o processo, uma vez que resolvera atender ao vidraceiro —, ligando a televisão mesmo quando Jackie a desativa e fumando no beiral do telhado, só de farra, termina por lançar o filme no caos interminável em que a narrativa mergulha, com as explicações sobre o desaparecimento das crianças, apresentado no prólogo, do jeito mais enérgico que se poderia imaginar.

A catalisação da ideia de dois indivíduos, um mais niilista que o outro, que instalam-se nos vãos de uma família e passam a explorá-la — base de “Parasita” (2019) de Bong Joon-ho — até que sejam fundamentais para o vislumbre de alguma saída para um cenário tão doentio, cala fundo ao aludir à máxima de que de perto ninguém é mesmo normal, e tanto pior: muitas vezes pode ser um psicopata que passa por cima de qualquer ideia de princípio e de limite a fim de saciar seus desejos mais hediondos.


Filme: À Espreita do Mal
Direção: Adam Randall
Ano: 2019
Gêneros: Suspense/Terror
Nota: 9/10