99% de aprovação: o filme mais impressionante do catálogo da Netflix Divulgação / Netflix

99% de aprovação: o filme mais impressionante do catálogo da Netflix

“Circus of Books” não é o que parece. A história de um dos mais famosos pontos de venda de artigos homoeróticos de Los Angeles, reputação que o levou a ser considerado um dos raros pontos de resistência à onda de ultraconservadorismo feroz nos Estados Unidos dos anos Ronald Reagan (1911-2004), ao longo de toda a década de 1980, é, na verdade, o relato profuso de uma família como outra qualquer, malgrado a forma como os pais garantiam o sustento de sua prole fosse, por óbvio, muito mais que um detalhe picaresco.

Rachel Mason, diretora e filha dos biografados, descobre com o espectador histórias do arco-da-velha sobre seus pais, Barry e Karen, do tempo em que aquelas sete cores não tinham nenhuma relevância sociológica e estavam longe de simbolizar uma parcela massiva da população mundial, por baixo, oitocentos milhões de indivíduos que foram se cansando de terem apenas obrigações e foram à luta pela igualdade de direitos e tratamento respeitoso, pagando com a própria vida muitas vezes.

O engenheiro eletrônico Barry Mason integrou a equipe de Linwood Dunn (1904-1998), responsável pelos efeitos especiais de “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968), o pioneiro dos filmes sobre aventuras espaciais levado à tela por Stanley Kubrick (1928-1999), vindo de “Star Trek” (1966-1968), a série idealizada por Gene Roddenberry (1921-1991) e exibida pela NBC, até inventar um aparelho capaz de detectar a presença de oxigênio na câmera do equipamento de hemodiálise usado por seu pai depois de um transplante de rim.

Convencido por um executivo do mercado hospitalar, Barry trocou os estúdios pela garagem de casa e passou a trabalhar com afinco na melhoria de seu invento, só para, meses mais tarde, ouvir que precisaria depositar 35 mil dólares como caução para que o serviço de patentes avaliasse a máquina. Rachel dedica cerca de um décimo da hora e meia de exibição à malograda carreira de inventor do pai, entremeando seu depoimento com uma pletora de imagens do Barry jovem — a fartura de fotos, vídeos e recortes de jornais dispostos como um mosaico irregular, mas também homogêneo, é sem dúvida um dos pontos fortes de “Circus of Books” —, até chegar a Karen, née Heller.

Jornalista em ascensão e judia praticante (ao contrário do futuro cônjuge), Karen, conhecida por cobrir justiça criminal para o “Wall Street Journal”, em Chicago, onde começou, e o “Cincinnati Enquirer”, no qual passou a ser reconhecida, ela chegou à conclusão de que suas matérias eram sempre sobre a desgraça de alguém. “Ou você para, ou se torna insensível”, diz Karen, uma septuagenária ainda viçosa, para a filha caçula. Ela parou, e assim estava prestes a nascer uma das atividades mais lucrativas a que jamais imaginara se associar.

Rachel se aprofunda no passado romântico dos pais, companheiros para além do altar por mais de trinta anos, uma verdadeira prova de fogo, segundo Barry. A pedido (ou mando) de Karen, o marido respondera a um anúncio publicado no “Los Angeles Times” por ninguém menos que Larry Flynt (1942-2021), o pornógrafo retratado por Miloš Forman (1932-2018) no filme de 1996, já àquela época um nome estreitamente ligado à venda de pornografia, ramo que o fez milionário. 

Flynt precisava de novos distribuidores, e Barry foi ao seu encontro, talvez numa das coberturas internacionalmente famosas por sediar ensaios com cadeirantes — o empresário ficaria paraplégico algum tempo depois, em 1978, alvejado por um supremacista branco —, idosos, anões, obesos.

A entrevista com Flynt, pouco mais que protocolar, não rende o esperado, mas nem de longe empana o vigor dramático e a riqueza jornalística do documentário, e Rachel volta a se concentrar onde seu filme faz sentido, e conversa também com Micah e Joshua, seus irmãos, reservando um tempo generoso para as histórias de bastidores contadas pelos ex-funcionários. “Atrás da Estante”, o título em português, alude à prática de sexo fortuito no depósito da livraria, depois da seção forrada de VHSs e DVDs de sexo gay explícito.

Tudo em “Circus of Books” sabe a um gosto bom de proibido, de nostalgia, de um tempo em que o prazer deveria ser esgaravatado nos lugares feitos para tal, a despeito de se ser homo, hétero, bi ou lobisomem. O outrora grande negócio não resistiu à onipresença da internet (até, ou principalmente, nesse aspecto da vida privada) e fechou as portas para sempre, às seis horas da noite de 30 de agosto de 2019, depois de 32 anos.


Filme: Circus of Books
Direção: Rachel Mason
Ano: 2019
Gêneros: Documentário/Biografia/Melodrama
Nota: 9/10