O filme na Netflix que todos deveriam assistir para acreditar em milagres, elevar a alma e acalmar o espírito Divulgação / Downtown Filmes

O filme na Netflix que todos deveriam assistir para acreditar em milagres, elevar a alma e acalmar o espírito

Em dias como os nossos, quando a bondade acaba por inspirar suspeitas que nada têm a ver com os mandamentos que Deus legou aos homens, gente como Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes (1914-1992) não teria chegado a fazer tanto para debelar um pouco que fosse o martírio de seu povo. Muito antes de ser chamada pelo nome que passou a significar uma vida de devoção às necessidades do próximo, de amor ao próximo, a menina Maria Rita já se afligia com o descaso das autoridades para com moléstias sociais que poderiam desfrutar de bom alívio com alguma boa vontade, muito trabalho, uma generosa medida de fé e, claro, oração para aquietar o espírito e conviver com o que não seria mudado com a devida urgência.

“Irmã Dulce”, a cinebiografia de Vicente Amorim sobre um dos cidadãos mais admirados da história moderna do Brasil, lembra a vida da freira católica desde a infância até o encontro com o papa João Paulo 2º (1920-2005), uma amizade que resistiu a pressões do Vaticano e do clero brasileiro, passando pela ordem na Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus em Sergipe, quando recebeu a denominação que a acompanhou por seis décadas.

Os roteiristas L.G. Bayão e Anna Muylaert se fixa nas realizações de Irmã Dulce neste plano, preferindo somente insinuar os milagres que levaram-na à santidade, em 13 de outubro de 2019, sob o pontificado de Francisco. De qualquer modo, este é o retrato comovente do Anjo Bom da Bahia, uma mulher que encontrava vigor na fragilidade, alguém que se perturbava verdadeiramente com o martírio silencioso dos cristos sem cruz.

Bayão e Muylaert distribuem a narrativa em três fases irregulares, com o destaque maior para a segunda, na qual Maria Rita já é Irmã Dulce e volta para Salvador, onde se divide entre as atividades do convento e a assistência à população de rua e moradores de comunidades periféricas.

Numa dessas, conhece João, personagem ficcional que, deixado pela mãe à porta do claustro, não pode entrar. A freira desobedece a um de seus votos — o que acontece com frequência meio previsível em pouco mais de hora e meia de filme — e leva o garoto ao hospital, que o recusa, por não ter vagas. Essa sequência, despretensiosa, prende o espectador, que fica ansioso por saber onde vai dar a ousadia da religiosa.

Ela encontra um imóvel desocupado numa favela ali perto, abriga o menino e volta para casa, já se preparando para o sermão da madre Fausta, de Malu Valle, que, claro, não gosta nada de saber que uma de suas pupilas passa a noite fora, mesmo que fazendo o que Chefe manda. O diretor consegue boas performances de Bianca Comparato nesses dois núcleos, estimulando na protagonista uma visão messiânica da personagem quando contracena com Lisandro Oliveira, mas obrigando-a a recuar à sua condição de serva da congregação a que se vinculara, ou acabaria botando tudo a perder.

Essa inteligência emocional de Irmã Dulce é um aspecto refrescante em sua biografia, mormente se em contraponto com a rebeldia santa que não a deixava parar, mesmo depois do diagnóstico que lhe dera mais alguns anos de vida, devido a uma doença pulmonar crônica. 

Passados vinte e sete anos, Irmã Dulce continua atuante, tratando dos doentes no ambulatório improvisado construído onde era o galinheiro do convento, além de distribuir sopa a quem encontra vagando pelas ruas do centro de Salvador. A entidade filantrópica coordenada por Irmã Dulce, fundada por ela no ano anterior, em 26 de maio de 1959, começa a angariar o apoio de associações em todo o Brasil e é vista certa ambivalência pela Igreja.

Dom Eugênio Salles (1920-2012), arcebispo de Salvador entre 1968 e 1971, afastou Irmã Dulce de suas funções oficiais, malgrado tenha permitido que ela continuasse a se apresentar como religiosa, conflito que o longa documenta com rigor, dando a Luiz Carlos Vasconcelos o posto de vilão possível.  Quase irreconhecível, Regina Braga destitui Irmã Dulce da gélida mitologia e lhe confere humanidade, como nos momentos em que se encontra com Augusto, o pai idoso vivido por Gracindo Junior, ou ao lembrar-se da mãe, de Glória Pires, morta quando ela era criança. O encontro com João Paulo 2º, em 1980, marca a reconciliação com que Irmã Dulce tanto sonhara. Pouco antes de morrer, em 13 de março de 1992, eles travaram um diálogo breve, mas com lágrimas de parte a parte.


Filme: Irmã Dulce
Direção: Vicente Amorim
Ano: 2014
Gênero: Drama
Nota: 9/10