O filme mais subestimado da Netflix: vale cada segundo do seu tempo, mas certamente você ainda não o assistiu Beth Dubber / Netflix

O filme mais subestimado da Netflix: vale cada segundo do seu tempo, mas certamente você ainda não o assistiu

As coisas mais valiosas decerto são as mais secretas. A possibilidade de se dizer o que se pensa, sem medo de patrulhas de quaisquer ordens, é sem dúvida a melhor dádiva dos regimes democráticos, o pior dos sistemas de governo, à exceção de todos os outros.

A arguta observação de Churchill cai feito uma luva para casos como o de Madalyn Murray O’Hair (1919-1995), uma mulher comum que só poderia ter ido tão longe graças à devoção que o americano nutre pela Primeira Emenda, base de todo o ordenamento legal, da atividade política e do vigor da imprensa nos Estados Unidos, o que não deixa de produzir excrescências muitas vezes difíceis de serem contidas. “A Mulher mais Odiada dos Estados Unidos”, a cinebiografia de O’Hair por Tommy O’Haver, tira o véu de uma personalidade controversa, apontando-lhe predicados e defeitos em igual medida, algo cada vez mais raro em tempos de pouca sensatez e mistificação galopante sobre tudo e qualquer um.

O’Haver e a corroteirista Irene Turner dão um mergulho corajoso e aprofundado na vida e na jornada de militante antirreligiosa da personagem-título, que foi angariando fãs e detratores mais e mais fanáticos, a ponto de sua existência tornar-se um alívio para espíritos ingenuamente livres e um câncer social a ser extirpado a qualquer custo.

Cansada de ouvir boatos de que as aulas dos filhos só começavam depois de um Pai-Nosso arrastado e sem convicção, O’Hair comparece à escola, indignada, e ouve da professora a sugestão em forma de deboche que vai mudar sua vida. Na juventude, essa senhora de linguajar um tanto destrambelhado ficara conhecida por ter se separado do marido e dado à luz um bebê que, dizia-se, era do amante. Essas vivências indiscutivelmente traumáticas referveram por anos, até que ela encontrou a oportunidade perfeita para, de um só golpe, exorcizar fantasmas, vingar-se dos algozes de quem nem se lembrava mais e faturar alto.

Ao pleito para abolir a prece das instituições de ensino da América e remover a expressão“em nome de Deus” do Juramento de Fidelidade à Pátria, executado em tribunais e atos cívicos, O’Hair juntou o faro para os negócios, inspirando doaçõesmilionárias para sua American Atheists (“ateus americanos”, em tradução literal), que despachava para contas em paraísos fiscais.

Especialmente afinada ao dar fôlego a esses tipos plenos de meandros nebulosos, Melissa Leo incorpora O’Hair em fases diversas, recorrendo aos enchimentos e perucas da equipe do premiado Koji Ohmura. Prêmio, aliás, é uma boa imagem para definir o trabalho de Leo que, sete meses depois da estreia de “A Mulher mais Odiada dos Estados Unidos”, em 14 de março de 2017, foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz em 2009 por “Rio Congelado” (2008), de Courtney Hunt — ela botou as mãos na estatueta dois anos depois, como melhor atriz coadjuvante, por “O Vencedor” (2010), de David O. Russell. Mas o filme de O’Haver não fica a dever em nada aos antecessores, e Leo tanto menos. 

O andamento farsesco pelo qual opta o diretor revela-se uma sacada genial, mormente depois da sequência do rapto da presidente da American Atheists, em agosto de 1995, que a polícia recusou-se a investigar por temer que fosse outra das ruidosas jogadas de marketing de O’Hair. Esse segmento, com o núcleo de bandidos composto por Josh Lucas, Rory Cochrane e Alex Frost, todos excelentes, põe um bocado mais de lenha na fogueira da lenda que se erigiu em torno da ativista, um pouco como acontecera com Larry Flynt (1942-2021), o pornógrafo retratado por Miloš Forman (1932-2018) no filme de 1996. No desfecho, O’Haver rasga a fantasia, mostrando a barbárie que encerrou a vida da ateia profissional, ao contrário do que experimenta Flynt, serenamente traído por um coração frenético. Mas homens (e mulheres) de negócios nunca se ofendem.


Filme: A Mulher mais Odiada dos Estados Unidos
Direção: Tommy O’Haver
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Biografia 
Nota: 10