Hino à cultura pop, filme que faturou mais de 620 milhões de dólares nos cinemas está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Hino à cultura pop, filme que faturou mais de 620 milhões de dólares nos cinemas está na Netflix

Toda a história do cinema — e, por extensão, da própria cultura pop — seria justo o contrário do que se tem hoje se super-heróis fossem dotados de um salvo-conduto para cometer barbaridades em nome da lei e da ordem. Qualquer um que já tenha sido criança sabe perfeitamente que esses indivíduos, meio humanos, meio fantásticos, emulando os atributos de morcegos, aranhas, felinos ou peixes, gastam um bom pedaço de suas vidas nem tão extraordinárias tentando fugir de traumas que nem eles mesmos entendem, e, dessa forma, enredos como o de “Hancock” passam a fazer todo o sentido.

Diretor plural, mas especialmente interessado em narrativas que expõem grandes desafios da humanidade neste vesano século 21, a exemplo de “O Reino” (2007) ou “O Dia do Atentado” (2016), Peter Berg permite-se uma pausa nos temas circunspectos e chuta o balde da inalcançável perfeição das figuras superpoderosas ou a nossa oca vaidade de cada dia. O texto de Vince Gilligan e Vy Vincent Ngo desdobra-se pelo cotidiano do personagem-título até que, por paradoxal que soe, encontramos muitas intersecções entre aquele anjo torto e nossas dores tão comezinhas.

Hancock surge deitado num banco de rua, depois de literalmente arrasar o quarteirão numa de suas últimas tentativas de salvar Los Angeles das garras do mal. O prejuízo de sete milhões de dólares para os cofres da cidade não perturba seu sono, mas um garotinho que aponta-lhe a debacle consegue tirá-lo do sério, embora ele nunca vá dar-se por vencido. Ele fica como todo desempregado, rolando de calçada em calçada à espera de uma boa oportunidade, até que um dos inúmeros cortes secos da boa edição de Colby Parker Jr. e Paul Rubell mostram um dos indefectíveis engarrafamentos angelinos, no cruzamento com a linha férrea.

O trem se aproxima, a filha não anda, o motorista desafivela o cinto de segurança, quer livrar-se do risco a qualquer custo. Já teria conseguido, não fosse a maçaneta estar sempre emperrada, e nisso a culpa é toda dele. Quem o salva é, claro, Hancock, da forma espalhafatosa como pode, o que dá azo a mais uma das homéricas confusões em que ele vai para cima de seus detratores com ofensas pessoais, mas inspirando a defesa apaixonada e incondicional de Ray, que agora precisa de uma mãozinha para de seu salvador para chegar em casa.

A louvável parceria de Will Smith e Jason Bateman segue pelo que resta da magra hora e meia de projeção, que passam sem que nos demos conta. Junta-se à dupla Mary, a esposa de Ray vivida por Charlize Theron, que guarda um segredo de polichinelo quanto à natureza de seu envolvimento com Hancock, que não denuncia de pronto. Num filme eminentemente tecnológico, Berg faz um belo trabalho de direção de atores ao instigar nos personagens de Smith e Theron um mal-estar, que evolui para ódio, que culmina no saboroso acerto de contas em que um imenso Kenworth de quase trinta mil quilos vira um brinquedo em poder de uma menininha birrenta. Argumento nada persuasivo, mas aceitável no filme de um super-herói à procura de si mesmo.


Filme: Hancock
Direção: Peter Berg
Ano: 2008
Gêneros: Ação/Comédia
Nota: 8/10