O futebol visto pelo buraco da fechadura Foto / Arquivo Público de São Paulo

O futebol visto pelo buraco da fechadura

Peço licença ao leitor para transportá-lo a um Brasil que já não existe mais. É 1955. Kubitschek é eleito presidente. Einstein acabou de morrer. Como todo mundo, você fuma um cigarro atrás do outro sem peso na consciência. E como todo mundo, você ainda tem na memória a derrota para o Uruguai na Copa de 50 que destruiu a autoestima da sua pátria. O ano já está terminando, é novembro. Ao chegar da rua, você pendura o chapéu — os chapéus, então, ainda estavam em plena vigência — e abre ao acaso a “Manchete Esportiva”.

Você se depara com uma crônica de Nelson Rodrigues sobre o Flamengo. Sabe que aí vem coisa. Ele conta a história da “seção terrestre” do Flamengo, que teve início em 1911, depois de uma briga entre membros do Fluminense (a “seção náutica”, mais antiga, data de 1895). Em certo ponto do texto, o anjo pornográfico profere: “O adepto de qualquer outro clube recebe um gol, uma derrota, com uma tristeza maior ou menor, que não afeta as raízes do ser. O torcedor rubro-negro, não. Se entra um gol adversário, ele se crispa, ele arqueja, ele vidra os olhos, ele agoniza, ele sangra como um césar apunhalado”.

Um trecho como este — evidência de um lirismo que conferia ao futebol o aspecto dramático de uma tragédia grega —, o leitor bem sabe, praticamente, não é mais encontrado na seção esportiva de nenhum jornal brasileiro. Quem lê hoje as crônicas de futebol de um Nelson Rodrigues, de um José Lins do Rego, de um Mário Filho tem a sensação de estar diante dos registros arqueológicos de uma civilização exótica que há muito tempo desapareceu.  

Registrado o lamento, passo para o tema do texto, propriamente dito: Nelson e o futebol. Quando tratava do esporte mais popular do planeta, ele empregava o mesmo expediente que utilizava para descrever as sombras interiores das famílias da classe média carioca: via tudo pelo “buraco da fechadura”. Sim, Nelson dizia: “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico”.

E o nosso anjo pornográfico, enquanto espiava pelo buraco da fechadura, viu no futebol uma alta realização da cultura nacional, um antídoto capaz curar o complexo de vira-lata do brasileiro, este “narciso às avessas que cospe na própria imagem”. Reconhecendo-o como um elemento valioso para tratar do seu grande tema — a humanidade nua e crua do brasileiro —, Nelson inseriu o jogo na sua obra dramática, antes mesmo de tratá-lo à exaustão em suas crônicas.

Assim, em “A Falecida” (1953), o dramaturgo conta a história da tuberculosa Zulmira, uma suburbana da Zona Norte do Rio que tem como grande meta de vida um enterro luxuoso. O marido, Tuninho, é um tricolor irrecuperável. No leito de morte, “a falecida” pede ao marido que procure um tal de Pimentel, um homem muito rico que estaria disposto a pagar o enterro de luxo que ela sonhava. Ao tratar com o milionário, Tuninho descobre que ele e Zulmira foram amantes. Rancoroso, ele pega o dinheiro e dá para a mulher um enterro digno de uma lacraia; em seguida, parte para o Maracanã e aposta tudo no Fluminense. Nos primeiros diálogos da peça, os personagens citam os jogadores Ademir (Vasco), Carlyle (Fluminense) e Pavão (Flamengo), todos ainda em atividade quando Nelson bateu o drama na máquina de escrever. Durante a estreia, no palco do Teatro Municipal em 8 de junho de 1953, a presença do futebol — ainda que sutil — foi recebida com alvoroço pela plateia. Segundo Ruy Castro, o escândalo se resumia numa frase: “Mas como??? Futebol no Municipal! Onde é que nós estamos?”

Era uma época em que o Municipal só admitia peças “sérias”. E o futebol não era visto como um assunto sério. Para Nelson, porém, era. E ele pôde explorar o tema com mais profundidade em suas crônicas publicadas na imprensa durante os anos que se seguiram. Há algumas coletâneas que pretendem reuni-las; “À Sombra das Chuteiras Imortais” (com seleção e notas de Ruy Castro) compila a maior parte delas, cobrindo o período que vai de 1955 a 1970. São 70 crônicas, das quais as primeiras 31 foram publicadas na “Manchete Esportiva” e as 39 restantes, em “O Globo”. Em sequência, “A Pátria em Chuteiras” traz as crônicas que foram publicadas até 1978.

Conta-nos Ruy Castro que a “Manchete Esportiva”, onde Nelson Rodrigues escreveu entre 1955 e 1959, foi primeiro imaginada por Mário Filho — irmão do dramaturgo. Adolpho Bloch, criador da famosa revista “Manchete”, gostou da ideia e, por sugestão sua, escalou Nelson como redator principal. A revista foi revolucionária em muitos aspectos. As fotos eram impressionantes, as crônicas dos irmãos rodrigues (Mário também escrevia semanalmente) eram sem precedentes e a coisa toda tinha uma atmosfera intelectual, misturando os últimos acontecimentos do futebol com elementos da cultura universal. Assim, em uma edição, vemos o meia Didi (Nelson se referia a ele como “príncipe etíope”) vestido como o “Rigoletto” de Verdi. Em outra edição, o zagueiro vascaíno Bellini aparece como o “Radamés” da ópera “Aida”. Apesar de tudo isso — ou talvez por tudo isso —, a revista foi um fracasso comercial. O biógrafo de Nelson Rodrigues parece ter acertado quando diagnosticou que “talvez fosse uma revista inteligente demais para o torcedor comum de futebol, cujo QI não era muito mais cintilante do que o de Tuninho, o anti-herói de ‘A falecida’”.

Em suas crônicas — não seria exagero afirmar —, Nelson chamava a atenção para o que passava despercebido, ou melhor, via o que ninguém viu. Tudo com uma grande licença poética. Assim é que, após um Flamengo 2 x 1 Canto do Rio, o cronista escolheu como seu “personagem da semana” a “cusparada metafísica” que o goleiro rubro-negro Dida deu na bola antes de defender o pênalti de Osmar. Explicou que, depois de um Flamengo 6 x 4 Hovénd, não é que o time de Puskás estava “mal”, “desambientado” ou mesmo “com saudades da família”, isso é só o nosso complexo de vira-lata falando, a verdade é que os “meninos da Gávea” humilharam os visitantes porque jogaram muito mais (nessa crônica, Nelson sentenciou: “O futebol brasileiro, jogando o que sabe, observando as suas verdadeiras características, é o melhor do mundo”). Mostrou-nos que não foi nenhum absurdo o Flamengo ganhar do América por 4 x 1 —sagrando-se campeão carioca em 1956 —, após levar 5 x 1 do clube rubro uma semana antes, porque “ele foi humilhado e sabemos que a humilhação, a grande e irresgatável humilhação, confere aos homens e aos times uma dimensão nova, uma potencialidade irresistível”. Notando o caráter mítico do “Fla-Flu” (expressão inventada por seu irmão), cunhou a frase imortal: “O Fla-Flu começou 40 minutos antes do nada”. Numa constatação muito freudiana, percebeu que “retire-se a pornografia do futebol e nenhum jogo será possível. Como jogar ou como torcer se não podemos xingar ninguém? O craque ou o torcedor é um Bocage”. E assim por diante, Nelson conferia uma nova camada de significação ao futebol. Parafraseando Ruy Castro — a maior autoridade em Nelson Rodrigues, depois do próprio, a quem recorro pela milésima vez —, a maneira com que o dramaturgo escrevia sobre futebol, quase desligando-o da vida real, joga-o numa dimensão de eternidade.

Quero chamar a atenção para a crônica “A realeza de Pelé”, publicada em 08 de março de 1958. Após a vitória do Santos por 5 x 3 sobre o América, demonstrando sua aptidão para profeta, Nelson Rodrigues foi o primeiro a chamar Pelé de “rei”, e se justificou: “O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento”. E continua: “Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha”.

Após a vitória da seleção sobre a Suécia por 5 x 2, o talento de Garrincha também foi merecedor de uma canetada imortal do anjo pornográfico — e seria um verdadeiro crime não a repetir aqui. Nelson notou que “(…) Didi, Zagalo e Nílton Santos pertencem à miserável condição humana. São mortais e suscetíveis de todas as contingências da carne e da alma. Jogaram por honra da firma e por um dever contratual. Estavam exaustos e no extremo limite de suas resistências emocionais e atléticas. Garrincha, não. Garrincha está acima do bem e do mal”.

Outra característica interessante das suas crônicas é o clubismo declarado. Ao contrário de Mário Filho, que era rubro-negro em segredo, o autor de “Vestido de Noiva” deixava transparecer em suas crônicas o fato de ser um tricolor doente, criando personagens como o Gravatinha, o fantasma de um homem vitimado pela gripe espanhola em 1918, cuja presença no estádio é sinal de vitória garantida do Fluminense. Já as derrotas do Tricolor eram atribuídas a outro fantasma, o Sobrenatural de Almeida. O dramaturgo também cunhou algumas frases célebres envolvendo o seu time do coração:

“Sou tricolor, sempre fui tricolor. Eu diria que já era Fluminense em vidas passadas, muito antes da presente encarnação”.

“Eu vos digo que o melhor time é o Fluminense. E podem me dizer que os fatos provam o contrário, que eu vos respondo: pior para os fatos”.

“O Fluminense nasceu com a vocação da eternidade…tudo pode passar…só o Tricolor não passará jamais.”

“Ser tricolor não é uma questão de gosto ou opção, mas um acontecimento de fundo metafísico, um arranjo cósmico ao qual não se pode — e nem se deseja — fugir”.

Conta Ruy Castro que a obsessão verde, branca e grená começou quando Nelson tinha oito anos, ficando encantado com os relatos de Milton Rodrigues — seu irmão mais velho, que já tinha idade para frequentar o estádio — sobre as campanhas do Fluminense de 1917, 1918 e 1919. Mário Filho escreveria anos mais tarde que naquele tempo, todo tricolor saberia recitar a escalação completa do time tricampeão: Marcos, Vidal e Chico Neto; Laís, Oswaldo e Fortes; Mano, Zezé, Welfare, Machado e Bacchi. Segundo ele, a métrica dessa escalação seria tão perfeita quanto um soneto parnasiano de Olavo Bilac.

Se é dado aos mortos retornarem para o mundo dos vivos, não é difícil adivinhar em que lugar o anjo pornográfico estava no último 04 de novembro, quando o Tricolor se consagrou como campeão da América ao bater os argentinos por 2 x 1 no Estádio Mário Filho.

Seja como for, embora consideradas por alguns intérpretes como uma parte “menor” ou “periférica” da obra rodriguiana, as crônicas de futebol conservam a mesma dramaticidade, o mesmo imaginário que transita entre o pornô e o sublime e a mesma genialidade fraseológica presentes nas histórias de “A Vida Como Ela É…”, nos romances de folhetim, nas peças teatrais e nas demais crônicas. Nelson Rodrigues viu tudo pelo buraco da fechadura.