A bula do crime: o furto dos quadros do Masp

A bula do crime: o furto dos quadros do Masp

Em dezembro, o ano já está agonizando. Seu destino fatal se aproxima e todos nós somos levados a refletir… O que fizemos com ele? O que deixamos de fazer? A maioria não gosta do que vê. Uma pesquisa de 2022 da Isma-BR (“Internacional Stress Management Association — Brasil”) revelou que o nível de estresse e ansiedade do brasileiro sobe aproximadamente 75% em dezembro, é a tal da “síndrome do fim do ano”. Não posso deixar de me perguntar como esse tipo de pesquisa é feita. Será que alguém é pago para monitorar a quantidade de lágrimas derramadas sobre o peru de Natal?

Seja como for, essa atmosfera borocoxô distrai qualquer um. Talvez isso explique o motivo de, na madrugada de 20 de dezembro de 2007, os vigias do Masp não escutarem coisa nenhuma quando três ladrões pularam os biombos de vidro da entrada e usaram um macaco hidráulico para arrombar a porta. Também passou despercebido quando utilizaram um pé de cabra para acessar a galeria e, três minutos depois, saíram pela porta da frente com o “Retrato de Suzanne Bloch”, de Picasso, e “O Lavrador de Café”, de Portinari.

Ambas as obras já haviam rodado o mundo. O quadro de Picasso passou por grandes museus de Londres, Lugano e Washington antes de chegar a São Paulo. O de Portinari, embora sempre tenha ficado no Brasil — numa coleção particular e depois no Masp — já foi cedido para exposições em várias cidades europeias como Lausanne, Zurique e Paris. Mas naquela madrugada, com certeza, foi a primeira vez que tiveram o privilégio de conhecer o interior de um Santana preto, logo após os ladrões deixarem o museu. Quadros furtados costumam passar por perrengues. Quando a Mona Lisa foi roubada em 1911 por um ex-funcionário do Louvre, ficou 28 meses debaixo de sua cama.

As obras foram levadas até um sobrado em Ferraz de Vasconcelos, uma cidade industrial construída ao redor de uma fábrica de lixas. Lá, permaneceram 19 dias até serem recuperados pela Polícia Civil de São Paulo. As pinturas não foram escolhidas ao acaso; elas eram avaliadas em 55 milhões de dólares e foram especificamente encomendadas por uma pessoa cuja identidade é até hoje desconhecida.

O “Retrato de Suzanne Bloch” é representativo do “período azul” de Picasso. Suzanne Bloch era uma cantora wagneriana, irmã do violinista Henri Bloch. Em 1904, o poeta Max Jacob apresentou-a ao pintor espanhol. O quadro nasceu depois que ela posou no seu estúdio em Paris. A obra foi adquirida pelo Masp graças ao dinheiro doado por Walter Moreira Salles.

“O Lavrador de Café” foi pintado por Portinari em 1934. A pintura representa um homem negro segurando uma enxada numa lavoura de café. Ele tem pés e mãos desproporcionais e parece preocupado. Ao fundo, há uma árvore desmatada. É uma denúncia à realidade sangrenta dos trabalhadores rurais. Coisa que Portinari conhecia muito bem, sendo filho de imigrantes italianos que trabalhavam em uma fazenda de café. O quadro foi doado ao Masp em 1964 pelo ex-ministro da Fazenda, José Maria Whitaker.

A polícia apurou que também estavam na “encomenda” quadros de Van Gogh, Renoir e Rafael. Ao que tudo indica, só escaparam pela incompetência dos ladrões. É surpreendente que o acervo do Masp não tenha sido completamente saqueado naquela época. Em 2007, no mês de outubro, os mesmos ladrões invadiram o museu, conseguindo acessar o segundo andar, mas acabaram fugindo sem levar nada. Um mês e meio depois, eles usaram um maçarico para tentar arrombar a porta lateral, sem sucesso. Em nenhuma das ocasiões a direção do museu fez boletim de ocorrência. 

Para piorar, na época, as obras não tinham seguro, o Masp não possuía alarme e as câmeras de segurança instaladas tinham a resolução de um Atari, além de não serem equipadas com infravermelho. Apesar disso, sete dias depois do crime, o primeiro suspeito foi preso. Usando um grampo telefônico, os policiais monitoravam uma quadrilha envolvida no assalto de um carro-forte quando, de repente, escutaram uma menção ao assalto no Masp e ao nome de uma pessoa identificada posteriormente como Francisco Laerton Lopes de Lima. Ele cumpria pena em liberdade condicional pelo roubo de um carro. Foi preso no Jardim das Camélias (zona leste de SP). À época, sua prisão não foi divulgada para não tumultuar a investigação.

No dia 03 de janeiro de 2008, o presidente do Masp, Julio Neves, recebeu uma carta repleta de erros gramaticais que exigia US$ 10 milhões pelo resgate das obras. O texto continha instruções de como a coisa toda deveria se dar. A direção do museu teria que publicar um anúncio num jornal do Vale do Paraíba, em 15 de janeiro, dizendo: “Fazenda Água Limpa, que pertenceu a Cândido Portinari. Valor US$ 10 milhões”. O comunicado deveria incluir um número de celular para que os criminosos pudessem dar continuidade às negociações. Só depois da publicação eles enviariam fotos comprovando que estavam com os quadros. Eles ainda advertiam que caso a exigência não fosse atendida, as obras seriam queimadas. Repito: a carta dizia que um Picasso e um Portinari, avaliados em US$ 55 milhões, seriam queimados.

Pelas informações divulgadas na imprensa, até hoje não está claro se foram os próprios ladrões que enviaram essa carta, ou se era apenas algum golpista com espírito empreendedor colocando em prática o milenar “vai que cola”. Cinco dias depois disso, a polícia prendeu Robson Jesus Jordão — conhecido como “Robinho” — na Barra Funda (zona oeste de SP). Ele havia foragido de uma penitenciária de Valparaíso, onde cumpria pena em regime semiaberto por uma condenação por roubo. Segundo relatou à polícia, eles receberiam R$ 1 milhão do contratante pelo “serviço”, porém, depois da ação, percebendo que os quadros eram muito valiosos, ele passou a exigir o valor de R$ 5 milhões. De Robinho veio a informação do local exato dos quadros em Ferraz de Vasconcelos.

A informação veio em boa hora. Os policiais já sabiam que os quadros estavam na cidade que à época era a segunda mais pobre do estado, mas não tinham o endereço exato. Assim, o depoimento de Robinho colocou fim a uma campana que já durava doze horas. Num sobrado do bairro do Cambiri, policiais civis da 3ª Delegacia da Divisão de Crimes Contra o Patrimônio encontraram as obras atrás de um armário, cobertas por um pano. Felizmente, estavam intactas. Do cativeiro, foram levadas para a sede do Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais). Várias autoridades aproveitaram para fazer uma sessão de fotos ao lado dos quadros, afinal o resgate de um Picasso e de um Portinari foi notícia no mundo inteiro. Depois disso, retornaram para o Masp.

Pouco tempo depois, no dia 10 de janeiro de 2008, a polícia divulgou a foto de um 3º envolvido no crime, Moisés Manuel de Lima Sobrinho. Seu perfil era diferente dos outros. Filho de fazendeiro, sem antecedentes, tinha viajado para vários países e sabia alguma coisa de arte. Naturalmente, a atenção da mídia em cima dele foi muito maior do que em relação aos outros envolvidos. Acompanhado por seu advogado, se entregou à polícia na manhã de 24 de janeiro. De acordo com a investigação, ele esteve no Masp algumas vezes antes do furto para conversar com funcionários e mapear onde as telas estavam.

Durante uma entrevista concedida a Luis Kawaguti, da Folha de S. Paulo, Moisés revelou uma personalidade rocambolesca, declarando que não cometeu o crime pelo dinheiro, mas apenas pelo “desafio”. Disse ainda que sua família estava sendo ameaçada pela pessoa que encomendou os quadros. Dois membros da quadrilha já teriam sido mortos — um deles com 86 tiros na zona leste. Essas informações, no entanto, não foram confirmadas pela polícia. Moisés não forneceu o nome do mandante, disse apenas que seria “um brasileiro muito conhecido”. Até hoje, sua identidade permanece oculta.

Em 03 de abril, Alexsandro Bezerra da Silva, dono da casa onde as obras de arte ficaram escondidas, foi preso pela polícia. O tempo passou, em 2009, uma sentença da Justiça Estadual de São Paulo condenou os quatro envolvidos. No mesmo ano, o STJ anulou as condenações por causa de um conflito de competência com a Justiça Federal (os quadros eram tombados pelo Iphan, uma autarquia federal, portanto o furto não poderia ser julgado na Justiça Estadual). Em 2010, o Ministério Público Federal denunciou os acusados. Foram todos condenados. Em 2015, após a defesa dos réus recorrer, Moisés, Robson e Francisco, condenados por furto, tiveram as suas penas diminuídas (as penas variaram de 3 anos e 6 meses a 5 anos, de acordo com a participação e as circunstâncias pessoais de cada um). Já Alexsandro, que respondia por receptação, teve a sua punibilidade extinta pela prescrição.

Apesar de tudo, uma coisa boa resultou dessa história. A empresa responsável pela proteção do Louvre se solidarizou com a situação delicada — leia-se: vexatória — da segurança do Masp e doou um sistema bem parecido com o utilizado no museu francês. Além disso, foi instalada uma base móvel da Polícia Militar em frente ao Parque Trianon, voltado para o Masp, que está lá até hoje.

Embora a identidade do mandante do crime permaneça oculta, é possível inferir uma personalidade de vilão de história em quadrinhos, do tipo que faz o mal para satisfazer um desejo fetichista de poder que não é expresso necessariamente em termos financeiros. Nesse sentido, em um jornal da época, Jorge Pontes, coordenador da Interpol no Brasil, afirmou: “Essas obras não são comercializáveis pelo menos nos próximos 10, 20 anos. Você não pode mostrar a ninguém. Serve apenas para saciar o prazer solitário daquele que encomendou. É freudiano”.