Premiado, filme de mistério que acaba de chegar à Netflix é um dos mais impactantes que você verá em 2023 Divulgação / Netflix

Premiado, filme de mistério que acaba de chegar à Netflix é um dos mais impactantes que você verá em 2023

Nem a melhor escola da face da Terra é capaz de ajustar a personalidade monstruosa de alguém. O que escolas podem (e devem) é identificar falhas pontuais daqueles que instruem e, ou com jeito ou com mais rigor, persuadi-los a rever suas posições, tomar outro caminho, até para seu próprio bem. O trio bestial que protagoniza “Nossos Segredos” passou incólume por professores carrascos e um diretor tirano, e, por evidente, sempre há de haver quem diga que esse foi o mal. A despeito da maneira incomparável como orientais encaram assuntos que tocam à civilidade e ao verdadeiro progresso, que arrastam um povo à revolução contínua, o filme do taiwanês Kai Ko dá à luz discussões incômodas, porém urgentes.

Ko, muito conhecido diante das câmeras, faz um ótimo trabalho de estreia na direção ao juntar suspense e terror e ainda elabora inferências estarrecedoras sobre coragem e ignomínia, altruísmo e desonra a partir desse amálgama à primeira vista indigesto, e em que medida essas virtudes e esses vícios se fazem presentes na natureza humana, iluminações que decerto conferiram ao longa o status de obra-prima no Udine Far East Film Festival, na Itália, um dos mais importantes eventos de divulgação do cinema asiático na Europa, com destaque para os filmes do leste da Ásia.

Qual a escala de indivíduos benévolos e cruéis na sociedade e de que forma exatamente manifestam seu poder? Na sequência de abertura, garotos devoram frutos do mar como feras, e já na largada o roteiro de Giddens Ko usa de todos os artifícios que consegue na intenção de ferir suscetibilidades, como na cena em que a lagosta que será servida é esventrada logo após fora do aquário. O bicho expele uma secreção grossa enquanto agoniza, e a ação corta para uma rua deserta, onde alguém faz sexo dentro de um carro. A turma de glutões que rompe a história agora está no terraço do prédio diante de cuja porta o automóvel está parado. A tensão se dilui graças ao neon vermelho de uma placa no frontispício, mérito da fotografia de Chen Ta-pu, mas recrudesce no momento em que eles gritam até um dos ocupantes botar a cabeça para fora da janela, e então jogam uma garrafa no seu rumo.

Chang, Han e Wang celebram em grande estilo a formatura do ensino médio, e quando o índice alcoólico já é convidativo o bastante, Chang, o personagem de Berant Zhu, sugere que cada um traga à superfície um episódio obscuro — e também repulsivo — já vivenciado por eles. O seu volta ao estupro da filha do diretor do colégio, menina cujas limitações intelectuais atribui à união consanguínea com uma parente; Han, por seu turno, lembra o dia em que resolveu abater a pedras o mendigo que levava os dias junto à ponte, acrescentando que talvez nem tenha se desviado tanto assim, uma vez que ninguém jamais daria pelo sumiço dele. Quando chega a hora de Wang, ele só consegue mencionar o fato de ter descoberto a infidelidade conjugal do pai e ter se omitido. Claro que os outros dois não aceitam, e pior, supõem que este possa ser um plano para chantageá-los. O duelo moral entre os tipos suspeitos encarnados por Edison Song e Kent Tsai é sem dúvida um dos grandes momentos da narrativa, antes que o enredo derive para um último ato esse, sim, pleno de horror depois que Chang e Han determinam como prenda para o fauno mais brando daquela trindade diabólica arremessar no gângster interpretado por McFly Wu a lata onde misturam a uma sobra de tinta o resultado de uma noite de carraspana.

Toda a quadrilha sai em disparada até alcançá-los, seguindo-se o espancamento de Wang e a condução dos três ao antro gerido pelo senhor Hsing, ele mesmo um ex-delinquente juvenil que conquistou seu lugar a duras penas e aprendeu a respeitar o espaço alheio derramando o próprio sangue. Há beleza nessa sucessão de barbárie acintosamente gráfica, obra do design de produção de Sunny Wu Jo-yun e à montagem de Huey Lee e Meng-Ju Shieh, quando o antagonista de Leon Dai passa aos garotos a lição que não se pode ter numa sala de aula, ao fim do dilema ético que, uma vez mais, põe a nu a frouxidão moral de Chang. Feito a lagosta do início do filme, ele também serve de banquete para os comparsas de Hsing, metáfora mais que adequada às pretensões estéticas de “Nossos Segredos”.


Filme: Nossos Segredos
Direção: Kai Ko 
Ano: 2023
Gêneros: Mistério
Nota: 9/10