Um dos filmes mais injustiçados da história do cinema está na Netflix Divulgação / Columbia Pictures

Um dos filmes mais injustiçados da história do cinema está na Netflix

“Lancelot, o Primeiro Cavaleiro” é um injustiçado. Em 1995, ano de estreia do filme de Jerry Zucker, outros dois romances medievais chegaram às telas dos cinemas do mundo todo, o que veio a empanar muito o brilho da saga lúbrica e mística de Lancelot, o mais insigne cavaleiro da Távola Redonda. “Coração Valente”, dirigido por Mel Gibson, e “Rob Roy — A Saga de uma Paixão”, dirigido por Michael Caton-Jones, nessa ordem, acabaram ficando no coração do público quando o tema são disputas viris e encarniçadas por poder, influência, autoafirmação e o amor de uma donzela ora instável como a pluma ao vento, ora arraigada a ideais que fazem-na também entrar de cabeça e espírito na defesa de sua pátria, de seus ascendentes e da pouca liberdade que poderia ter há 1.500 anos.

Sem dúvida, o ponto alto do roteiro de David Hoselton, Lorne Cameron e William Nicholson é uma visão organicamente feminista do mito divulgado pelo francês Chrétien de Troyes (1135-1191) no poema “Lancelote, o Cavaleiro da Carreta” (1170), dedicado a registrar o amor entre um guerreiro conhecido pela bravura e pela retidão e uma aristocrata disposta a sacrificar sua felicidade pelo bem de seu povo.

Guinevere é a verdadeira alma dessa história. Sabendo desde sempre que seria desposada por um rei, a fidalga mais bonita do reino de Camelot sabe das agruras dos plebeus dos vilarejos mais afastados, que têm padecido com saques violentos e bulhas constantes pela posse do solo. Cada um defende-se como pode, e é nesse ambiente de completo desarranjo institucional que Lancelot também ganha a vida. Espadachim tarimbado, ele desafia os camponeses com duelos não letais em que ensina seus concidadãos a manejar armas brancas (e inclementes quando necessário), em troca de algumas moedas, e pouco depois, o povoado sofre outro golpe, o definitivo.

Malagant, o príncipe insurgente de Ben Cross, ateia fogo às choupanas de feno e cortiça e ruma para a sede da monarquia, quando pretendem destronar Arthur. Tomados pelo desespero, aquela pobre gente vai ao encontro de Guinevere, que os acolhe, oferece-lhe abrigo e comida, e Julia Ormond começa a despontar na pele da estrela do filme. Ela fica sabendo da fama de Lancelot e o convoca a juntar-se a ela e aos aldeães na tentativa de frear os ímpetos usurpatórios de Malagant, com boa chance de sucesso, já que contará com o apoio do soberano, seu futuro marido. Mas nesse ponto as coisas se complicam deveras.

Os campos sempre verdes de Albion, luminosos na fotografia de Adam Greenberg, servem de palco à fuga de Guinevere e Lancelot, num idílio frustrado devido à insuperável crise de consciência prestes a dominar a futura rainha de Camelot, que se entrega. No princípio do terceiro ato, no julgamento dos amantes platônicos, Zucker testa as convicções morais do espectador ao fazê-lo torcer para que os dois se livrem, o que de fato ocorre, mas não por um gesto de benemerência do rei Arthur. Ormond e Richard Gere, cujo carisma levanta o filme em inúmeras circunstâncias, demonstram sintonia até nessas horas de tensão; Sean Connery (1930-2020), por outro lado, majestoso como sempre, é a própria encarnação da magnanimidade ao não se curvar ao rival e perdoar a prometida e seu escudeiro. Sem o merecido prazer de um final feliz numa história quase milenar e atual — ao menos enquanto existirem homens poderosos e mulheres enamoradas deles.


Filme: Lancelot, o Primeiro Cavaleiro
Direção: Jerry Zucker
Ano: 1995
Gêneros: Aventura/Romance
Nota: 8/10