Bandidos de todos os coturnos têm experimentado um gosto de celebridade ao longo dos anos, ajudados pelas releituras históricas de determinados filmes que, além de mentirosas, fedem à mais descarada apologia ao crime. No Brasil, decerto “Tropa de Elite” (2007), dirigido por José Padilha, é o único filme a apresentar o submundo da ilegalidade ao espectador admitindo a existência de policiais honestos, cônscios de seu dever social e nada inclinados a seduções de quem quer que seja, da imprensa, da academia ou dos donos do poder.
“Retorno da Lenda”, a começar pelo título, vai na direção oposta, glamorizando a figura de um ladrão de gado e de cavalos que, a pouco e pouco, foi estendendo e sofisticando seu raio de negócios escusos até apinhar dinheiro o bastante para isolar-se num rancho em Baxter Springs, até hoje pouco mais que um vilarejo providencialmente esquecido pelas autoridades, no extremo sul do Kansas, Centro-Oeste dos Estados Unidos.
Isso é o que se depreende da versão romanceada do filme de Potsy Ponciroli, um diretor tão low profile quanto inventivo, cujo roteiro adapta o pouco que se conhece acerca de William Henry Bonney (1859-1881). Billy the Kid, segundo os registros, morreu aos 22 anos incompletos, num tiroteio com Pat Garrett (1850-1908), o xerife de Lincoln, Novo México. Na versão de Ponciroli, Henry, também conhecido por ao menos outros quatro pseudônimos, como Virgulino Ferreira da Silva (1898-1938), o Lampião, ou Cristino Gomes da Silva Cleto (1907-1940), chamado de Corisco ou Diabo Louro entre os outros salteadores e os agentes da ordem pública, só entregou-se de parabelo na mão, creditando a algum deus ter podido resistir ao cerco dos homens da lei e atingir o começo de uma velhice que, presumia, não reservava-lhe mais grandes sobressaltos.
O diretor-roteirista abre seu filme com o que se supõe o anti-herói sendo acossado por um trio de cavaleiros, óbvia alusão a “Três Homens em Conflito” (1966), o clássico do spaghetti western dirigido por Sergio Leone (1929-1989), representante maior do gênero e mestre do cinema, embora tenha-se invertido o sinal ideológico. Essa é a pista falsa que inaugura um relato cheio de sutilezas, no qual postulantes a messias e rematados criminosos trocam de lugar sem cerimônia, valendo-se de prestidigitações ágeis, quase diabólicas, que entorpecem o público.
Samuel “Sam” Ketchum (1854-1899), o delegado-chefe de uma aldeia em Oklahoma, pergunta pelo Velho Henry a outro bandido, Curry, o suspeito que tinha alvejado e arrastara por bons metros pela pradaria, um dos lances mais apreensivos de um enredo que alterna-se entre o drama e o suspense com cálculo, mas também com emoção, mérito de Stephen Dorff e Scott Haze. A tensão do excelente prólogo não finda aí, por óbvio, e se desdobra para um segundo ato cartesiano, no transcurso do qual Ponciroli retoca o perfil do tipo ensebado vivido por Dorff, que deveria assumir o posto de redentor no longa, mas é, na verdade, um sujeito pragmático até a medula, frio e com um nítido pendor à crueldade.
Ketchum domina boa parte de “Retorno da Lenda”, mas todas as vezes em que o antimocinho de Tim Blake Nelson aparece, com seus conflitos éticos e dilemas existenciais que nunca se resolvem, sabe-se exatamente quem é que manda. Em que pese seu fim nada auspicioso, traído por um homem a quem dava guarida.
Filme: Retorno da Lenda
Direção: Potsy Ponciroli
Ano: 2021
Gêneros: Drama/Ação/Suspense
Nota: 9/10