Suspense inspirado em crime impactante que estampou jornais do mundo todo acaba de chegar na Netflix Divulgação / Netflix

Suspense inspirado em crime impactante que estampou jornais do mundo todo acaba de chegar na Netflix

Beleza e dinheiro sempre partilharam os mesmos lençóis. Aos poucos, também começam a fazer parte da equação fatores obscuros, mas que, queira-se ou não, mantêm um liame mais ou menos incorpóreo junto a essas duas variáveis muito restritas da existência, como nunca deixasse de pairar uma maldição sobre as cabeças de quem recebe da vida esse regalo, confirmando a voz cava das ruas quando diz que ninguém jamais poderá ter tudo. Mauricio Leal (1974-2021) chegou ao mundo com o pé direito, e pelo que “História de um Crime: O Cabeleireiro das Estrelas” revela sobre sua jornada, poderia ter ido ainda mais longe.

O trabalho do colombiano Jacques Toulemonde Vidal carrega nas tintas de uma investigação de polícia árdua, morosa, tensa, enquanto disseca a intimidade de uma pequena família cujo fedor de dissimulação vai recendendo até que um desses espíritos, talvez nem o mais funesto deles, não aguenta e extravasa morte por todos os poros. O filme de Vidal, registro de uma porção de sentimentos controversos entre si, mas perfeitamente explicáveis, dispensa o rótulo de reconstituição de criminal — malgrado tanto na abertura como no encerramento uma mensagem reforce a ideia de que ali nem tudo é verdade — e deixe nas entrelinhas a proposta de estudo dos contornos psicológicos de três pessoas que decerto se amaram um dia, mas sucumbiram aos piores sentimentos que não puderam evitar.

Na noite de 21 de novembro de 2021, Mauricio, um dos cabeleireiros mais famosos da Colômbia, liga para o irmão mais velho pedindo que lhe compre um pacote de biscoito salgado integral. Yhonier apenas ouve a voz do caçula e não responde nada, ou por estar dirigindo ou por não ter mesmo vontade, e essa é a primeira das várias indagações que ficam sem resposta em 71 minutos, não por incúria do diretor-roteirista, mas pela própria anomalia do caso. Quando Yhon chega, a cena corta para dois cadáveres, o de Mauricio e o da mãe, Marleny Hernández (1954-2021), a personagem de Myriam De Lourdes, numa cama forrada de branco, mortos com um objeto cortante, e o público já não tem mais qualquer dúvida sobre o que se passou. Alguns segundos depois, surge na tela um rosto de mulher, paralisado diante do espetáculo dantesco que se vê.

A detetive Rebeca Soto observa tudo entre atônita e fria, esforçando-se por não perder nenhum dos fragmentos da cena de um crime esdrúxulo, bárbaro, misterioso, porém repleto de detalhes com que ela já deve ter topado em outras diligências. Junto a um dos corpos, há uma carta-testamento manchada de sangue, onde o morto diz que lega sua fortuna aos sobrinhos e irmãos, Yhon e Carlos Andrés, preso, e um número, 1124, cuja importância Vidal esclarece no desfecho.

A narrativa, grosso modo, funda-se sobre as personagens de Juana del Río, Johan Velandía e Alejandro Gómez, nessa ordem, sendo que Gómez ocupa aparece só de quando em quando, nos flashbacks em que a trama deriva para as memórias confusas de Yhon e a maneira como enxergava Mauricio, ou Maíto, um desarranjo de lealdade fervorosa e vergonha, orgulho e uma urgência patológica de agradar. Del Río e Velandía, por seu turno, levam quase todo o filme enfrentando-se, com vantagem ora deste, ora daquela. Entretanto, uma dos vinte detetives mais proficientes da Colômbia, com uma taxa de resolução de ocorrências superior a 27%, sabe fazer com que a serpente engula seu próprio veneno, o que acontece em mais de uma ocasião.

Na iminência do epílogo, Vidal ressalta uma vez mais aspectos nebulosos da vida de Mauricio, como a dependência em analgésicos depois de um transplante de pulmão — cujo efeito tratava de amenizar com zopiclona, um sonífero poderoso —, o possível envolvimento com os narcocartéis, que o teriam ajudado a sonegar impostos e lavar dinheiro, uma das explicações mais plausíveis para ter ficado tão rico num tempo tão curto, e as humilhações a Yhon, a exemplo de quando espalhou várias cópias de “Me Veras Volar” (2015), o CD que gravara anos antes, no quarto que o irmão mais velho tinha na mansão de Vía La Calera. Em 14 de janeiro de 2022, quiçá vislumbrando algum movimento posterior que só ele pensava efetivio, Yhonier Leal aceitou a proposta do Ministério Público, declarou-se culpado pelo duplo homicídio de Marleny Hernández e Mauricio Leal, e cumpre pena de sessenta anos de prisão em regime fechado na penitenciária de La Picota, em Bogotá. Rebeca Soto foi afastada do caso pouco antes do fim das investigações, numa manobra covarde e misógina. Ainda se cogita a participação de um cúmplice de Yhonier nos homicídios.


Filme: História de um Crime: O Cabeleireiro das Estrelas
Direção: Jacques Toulemonde Vidal
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Policial
Nota: 9/10