Oldboy: a pedagógica tragédia de Park Chan-wook Divulgação / Neon

Oldboy: a pedagógica tragédia de Park Chan-wook

Nos primórdios do cinema mudo japonês, era muito comum a figura do “benshi”, um ator profissional responsável pela narração dos filmes. Ele também fazia comentários técnicos e culturais, ajudando a contextualizar as cenas — isso era importante principalmente em produções estrangeiras. Não raro, o “benshi” contava a história inteira antes de o filme começar. O japonês, acostumado que estava ao “Kabuki”, ao “Noh”, ao “Bunraku” e a outras artes cênicas tradicionais, cujas peças se baseiam em lendas imemoriais, de conhecimento geral, não se chocava com a perda do “efeito surpresa”. Para ele, a experiência teatral — e, posteriormente, a cinematográfica — se baseava muito mais na apreciação da capacidade interpretativa de cada ator. Mas esse tempo e essa sensibilidade ficaram para trás. Musei Tokugawa, o “benshi” mais famoso de todos os tempos, morreu nos anos 70. Apesar de uma corajosa meia dúzia de praticantes que ainda resta, podemos dizer que o ofício do “benshi” está tão vivo quanto o do telégrafo ou o do guarda-freio. Atualmente, revelar antes do filme — à maneira de um “benshi” —, o ponto chave do roteiro é um daqueles crimes passíveis de linchamento público. Por tudo isso, sou obrigado a dizer: este texto contém “spoiler”. E dos grandes.

Há algumas semanas, tive a oportunidade de assistir “Oldboy” em uma tela de cinema. Já havia visto o filme outras vezes, mas sempre pelo computador. A experiência, é claro, foi muito mais impactante. A sala de cinema, com seu breu artificial e seu imponente ecrã, como que convida o expectador a imergir em cada “frame”. Nelson Rodrigues dizia que a cama é um móvel metafísico, onde o homem nasce, dorme, sonha, ama e morre. O mesmo poderia ser dito da poltrona de cinema, com a diferença de que nela esse ciclo se completa ao tempo de uma sessão.

Bom, vamos ao filme. Dirigido por Park Chan-wook e lançado em 2003, o enredo do longa-metragem sul-coreano se baseia num mangá japonês de mesmo nome do final dos anos 90, escrito por Garon Tsuchiya, com ilustrações de Nobuaki Minegishi. O filme é o segundo da “Trilogia da Vingança”, de Park Chan-wook; precede “Sympathy for Mr. Vengeance” (2002) e antecede “Lady Vengeance” (2005).

Somos convidados, desde a primeira cena, a seguir os passos desajeitados de Oh Dae-su rumo ao seu apocalipse particular. Depois de uma noite de bebedeira, o protagonista é sequestrado e levado a um quarto de hotel. Uma atmosfera kafkiana toma conta da trama. Ele não sabe quem lhe colocou lá, nem o porquê. Paralelamente, ele fica sabendo pela TV do quarto de hotel que sua esposa foi assassinada e ele é apontado pela polícia como o principal suspeito. Quinze anos se passam, ao longo dos quais Oh Dae-su treina seu corpo intensamente e cava em segredo o reboco da parede com a esperança de escapar do quarto. Certo dia, porém, sem nenhuma explicação, ele é solto do cativeiro.

Tomado pelo desejo de vingança, ele tenta desesperadamente descobrir quem destruiu sua vida e o motivo. Oh Dae-su acaba conhecendo uma jovem chamada Mi-do, que decide ajudá-lo em sua busca. Os dois se apaixonam e desenvolvem uma intensa relação de afeto. Algum tempo depois, o protagonista descobre que quem o colocou no hotel foi um homem nome de Woo-jin. É revelado posteriormente que ele e Oh Dae-su estudaram na mesma escola. Nessa época de estudante, Oh Dae-su descobriu que Woo-jin e sua irmã, Lee Soo-ah, mantinham uma relação incestuosa.

Oh Dae-su comenta o caso com um colega de sala. O boato logo se espalha e aumenta de tamanho. Fala-se pelos corredores da escola que Lee Soo-ah está grávida de Woo-jin. Influenciada pelo boato, a menina desenvolve uma gravidez psicológica e, no mais absoluto estado de desespero, acaba por se suicidar. E assim se explica o porquê de Woo-jin ter mantido Oh Dae-su preso durante quinze anos.

Mas a vingança diabólica de Woo-jin não termina por aí. E eu recomendo que quem pretenda assistir o filme pela primeira vez com o “efeito surpresa” pare a leitura imediatamente. Woo-jin hipnotizou Oh Dae-su e Mi-do para que eles acabassem se conhecendo. A paixão, porém, era imprevisível, e aconteceu por “sorte”. O detalhe mais sórdido do filme vem agora: é revelado que Mi-do é a filha de Oh Dae-su, seu plano consistia precisamente em fazê-los desenvolverem uma relação incestuosa, tal qual ele mantinha com a própria irmã. O próximo passo da vingança seria então revelar tudo a Mi-do. Oh Dae-su suplica a Woo-jin que não o faça e corta a própria língua — assim como Édipo cortou os próprios olhos na tragédia de Sófocles — para que a verdade não seja revelada. As súplicas surtem efeito. Woo-jin se mata e, ao final, Oh Dae-su convence a mulher que o hipnotizara quando ele deixou o quarto (ela trabalhava para Woo-jin) a apagar a sua memória quanto ao fato de Mi-do ser sua filha. Na última cena, Oh Dae-su e Mi-do se abraçam.

Se pensarmos bem, o final é perverso. Se Oh Dae-su não se lembra mais do teor incestuoso da relação, ela continuará indefinidamente. Assim, ao levantar-se da poltrona, o expectador não experimenta aquela sensação de purificação por meio da descarga emocional advinda de um trauma, que Aristóteles chamou de “Catarse” — o efeito natural da tragédia —, mas sim uma sensação de angústia.

Essa angústia, no entanto, não deixa de ter um caráter pedagógico. Oldboy nos faz lembrar do tão esquecido “poder das palavras”. Num diálogo antológico, Woo-jin fala a Oh Dae-su algo como: “Foi a sua língua que engravidou a minha irmã”, referindo-se ao fato de o boato ter feito a barriga de Lee Soo-ah crescer tal qual a de uma grávida. O filme mostra — de maneira magistral — toda a desgraça que uma palavra “maldita” pode causar na vida de alguém.

Em termos de literatura, o enredo lembra dois livros célebres: “A Tragédia da Rua das Flores” — o trabalho mais polêmico de Eça de Queirós — e “O Conde de Monte Cristo”. O primeiro trata de uma relação incestuosa entre uma mãe e um filho (ambos não tinham ideia do parentesco); o segundo, de uma grande vingança. Oldboy acaba unindo essas duas tramas numa tragédia espetacular.

O expectador sai da sessão tonto e angustiado, com a certeza de que acabou de presenciar uma grande obra de arte — que, de sobra, o ensinou alguma coisa. O olhar habilidoso de Park Chan-wook engendrou um monstro, no melhor sentido da palavra. Com toda certeza, vale a experiência.