Eu conspiro contra o universo

Eu conspiro contra o universo

Não me casei. Não me casei porque não quis. Perdi o juízo aos 38. Tinha passado incólume pelo ímpeto de me atirar de um tédio sobre os braços invisíveis do esquecimento. Sempre fora uma famosa ninguém, uma célebre em nada, uma PhD em pessimismo e neurastenia. A partir de tal ruptura emocional, a primeira atitude que me ocorreu, enquanto persona desajustada, foi aposentar o relógio de pulso nalgum canto da mobília. Recebera como herança um diagnóstico reservado e o relógio de bolso do meu avô paterno, o qual foi solenemente esquecido num poço insondável da minha memória.

Abandonei a agenda de papel, o despertador, os alarmes de segurança e frivolidade das redes sociais da internet. Eu arriscava os meus dias contando tão somente com o talento funcional e bioquímico dos meus neurônios que faiscavam sinapses nos fios desencapados do hipocampo. Quem planta dúvidas colhe escândalos. Passei a acordar na hora em que o corpo decidia. Se me deitava tarde da noite, despertava no avançado da manhã. Se dormia cedo demais, apeava da cama aos primeiros raios de sol, sem pressa de dar pernas ao tempo e fôlego aos pensamentos acelerados.

Peguei de mal com o sol. Passei a tomar menos banhos do que o habitual. Andava porca mesmo, ninguém tinha nada a ver com isso. Interagia com os micróbios — criaturinhas de Deus — de forma mais empática. Bebia Cuspe Sour acima da média dos últimos trinta anos. Doei a Kombi bicolor, presente de papai, para um abrigo de freiras aposentadas. Criei o hábito de caminhar até o mercadinho mais próximo para selecionar, eu mesmo, os alimentos que consumiria. Todos os conhecidos sumiram do mapa. Contudo, não me exasperava com a justeza da solitude. Não me atemorizava com a solidão, que parecia, finalmente, a irmã que nunca tive.

Reaprendi a cozinhar sozinha, a queimar o feijão na panela, a alimentar legiões de baratas com pilhas de utensílios em deplorável estado de limpeza. Acumulava lixo e lembranças agastadas do passado. “Quanto mais sujo, melhor”, festejavam as baratas, incrédulas com tanta porcaria. Ainda assim, eu as esmagava com a devida falta de compaixão, usando o primeiro objeto potencialmente letal que encontrasse pela frente. Sentia pelos insetos do esgoto o gosto em exterminá-los, um asco descomunal, o que não deixava de se constituir numa prova contumaz de que permanecia infeliz e viva.

Nada mal deixar de ter um diretor que me despejava mil tarefas sobre o lombo, um supervisor baba-ovos viciado em técnicas de gestão pública e o escambau a quatro, um colega de trabalho que me impingia metas que não eram as minhas. Naquela altura dos acontecimentos, o meu objetivo principal era me afastar das pessoas que me aporrinhavam e gozar o rancor que me derretia por dentro como se fosse uma vela queimando aos poucos. De repente, a partir do fatídico marco temporal de um laudo histopatológico escabroso, parecia lógico que quase todos amolecessem comigo. Quanta falsidade.

Alimentei a ambição de ser esquecida até o final do verão. Sabia, contudo, que o fisco não me proporcionaria tamanho luxo de esquecimento. Quando se tratava de esfolar o cidadão, de sangrar o contribuinte até o último níquel, o governo federal jamais se esquecia de alguém. Tinha votado no candidato progressista, mas, o sujeito continuava a fazer as mesmas asneiras do seu antecessor, um lunático da extrema direita que depurava intolerância em todos os seus matizes, vociferando discursos de ódio que misturavam patriotismo e religião, criando um caldo indigesto que me embrulhava o estômago, ameaçava a democracia, embora, alimentasse o imaginário dos conservadores hipócritas sacripantas. Pelo menos, o país tomava um respiro e se encontrava temporariamente livre da ameaça de um golpe de estado perpetrado por uma corja de civis e de milicos com parcos recursos cognitivos.

Tinha decidido não me envolver afetivamente com outros homens durante o período de isolamento. Considerava-me uma mulher assexuada. Apesar disso, quando raramente sentia o desejo de me esfregar com outro ser humano, deitava-me sozinha, sonhava, gozava como um animal no cio e punha o lençol molhado de suor e de fluidos corporais dentro de uma lavadora de roupas com sabão em pó de marca vagabunda. Vagamente, eu me lembrava que determinadas máculas jamais saíam do tecido mental, por mais que as esfregasse.

Papai estava morto. Mamãe eu tinha matado ainda em vida. Por mais que a megera se humilhasse telefonando, mandando recados, enviando cartas, entregando presentes, desentendida com as ríspidas reações de minha parte, cortei com ela relações, de-fi-ni-ti-va-men-te. Fiz questão de ressaltar para aquela senhora que eu não possuía mais uma mãe. Já tinha brigado com meio mundo e me sentia autossuficiente o bastante para peitar o que viesse pela frente, a tacar o foda-se até a conclusão do meu tratamento. Se eu sobrevivesse à sanha da medicina em recuperar moribundas como eu, nem morta eu reataria o relacionamento com mamãe e com os meus irmãos, uma súcia de canalhas egoístas e misóginos que tinham decidido me sacanear desde sempre.

Na acepção da palavra, eu nunca tinha tido uma família de fato. Só compreendi o meu isolamento, aquela situação particularmente bárbara, quando surtei, aos 38. Tinha acabado de retornar de Budapeste, onde morei por mais de uma década, um país cujo povo forte, frio e extremamente pragmático dava mais valor à companhia dos gatos e dos cachorros do que dos seres humanos. Genial comportamento. Eu queria viver, sobreviver, confrontar e vencer a todos.

Optei em tocar a vida da forma que pudesse, tornando-me um encosto para a previdência social do estado brasileiro. Ganhava merrecas como professora universitária de dedicação exclusiva na faculdade de engenharia civil. Todo dia 30 caía uma bagatela na minha conta bancária, desta feita, sob a forma de uma ridícula pensão estatal por invalidez temporária. De inválido, só o amor. Nada era definitivo: nem a vida, nem a morte, nem a droga de um interlocutor silente que reconhecesse o meu valor e que apoiasse as minhas causas. Ninguém me aceitava. Ninguém me compreendia. Por isso mesmo, valia a pena conspirar contra o universo. Ainda me restavam inúmeras perdas afetivas pela frente, o que não deixava de ser uma forma amarga e palpitante de se viver.