A obra-prima que lotou os cinemas argentinos está na Netflix Divulgação / Argentina Video Home

A obra-prima que lotou os cinemas argentinos está na Netflix

A polícia é um dos instrumentos de que a civilização tem se valido a fim de sufocar a tendência ao caos inerente à natureza do homem. No entanto, sempre há o risco de que ela renuncie ao seu papel inescapável de impor limites ao cidadão comum e torne-se parte de uma estrutura pútrida, repulsiva, que marcha a passos firmes para a decomposição sem volta; quando isso deixa de ser uma hipótese execrável e distante e se materializa numa verdade incômoda que se apodera do cotidiano de todos, ninguém sai ileso. Imbricado num labirinto de ardis que no princípio o apavora, mas pelos quais vai tomando gosto, Zapa, o anti-herói que protagoniza “Do Outro Lado da Lei”, é o clássico exemplo do sujeito que ascende na escala social na contramão do declínio de um povo.

Há um quarto de século, Pablo Trapero é um dos cineastas que diagnosticam com mais precisão as moléstias da Argentina e, em alguma grau, as da América Latina como um todo. Desde “Mundo Grua” (1999), o diretor trata de encontrar uma brecha de humanidade nos tipos que ajuda a criar, mas aqui faz o caminho inverso ao trilhado no longa de 1999. Se em “Mundo Grua”, Rulo, o mocinho bonachão de Luis Margani, se conforma em permanecer no lugar que o tal sistema lhe reservara, esperando e esperando por uma chance, mas sabendo que, em tudo se mantendo igual, deverá continuar a viver, como se nada tivesse havido, o personagem central de “Do Outro Lado da Lei” deixa-se gostosamente moer pela gigantesca engrenagem que nos move para baixo e para cima, disposto a, por evidente, subir cada vez mais.

O desejo de Zapa, um modesto chaveiro, de passar à academia de polícia da capital, torna-se realidade graças ao primeiro dos grandes cambalachos expostos no roteiro de Dodi Shoeuer, Nicolas Gueilburt e Ricardo Ragendorfer. Aos 32 anos, ele já não tem mais idade para prestar o exame de admissão, mas o jeitinho portenho — ou bonaerense, gíria algo pejorativa que descreve tanto os moradores da Zona rural da província de Buenos Aires, como os integrantes da força policial da cidade — faz com que lhe deem 28. Não é necessária qualquer intimidade com o meio para se constatar que o recruta não tem nenhuma aptidão para o ofício, mas. Zapa, uma rica composição de Jorge Román, sempre atento aos detalhes, é indolente, simplório, quiçá até meio idiota, mas esforçado, o que não lhe serviria de muito, se não fosse a habilidade com chaves e fechaduras.

Trapero faz excelente uso das rubricas de Shoeuer, Gueilburt e Ragendorfer e explora o quanto pode essa ingenuidade pueril de seu protagonista, impelido a mudar de fase no momento em que o vice-inspetor Gallo, de Dario Levy, o convence a lançar mão de seu talento para operar num esquema de arrombamento de cofres e virar seu homem da mala, quando o expediente da quadrilha atinge um estado de refinamento quase imbatível. De pouco em pouco, Zapa assume também o papel de extorsor oficial do bando, inclusive no bordel onde aprimora suas parcas vivências de alcova. Nesse âmbito, o aprendiz de mafioso revela-se especialmente inepto, até se aproximar de Mabel, a instrutora de polícia encarnada com charme e altivo por Mimí Arduh, que, nenhuma surpresa, não quer mais saber dele ao descobrir sua vida dupla. 

À medida que o filme se encaminha para a conclusão, Trapero faz recrudescer a violência das relações entre Zapa e seus superiores, o que o autoriza a replicar esse comportamento, num turbilhão de pessimismo, sombras de morte e desprezo à princípios básicos de decoro e civilidade em que Argentina mergulha desde há vinte anos, com respiros periódicos e breves de bom senso. O mal que se instala de um para outro episódio dessa natureza, todavia, perdura para além do que a vista pode alcançar, cristalizando uma mentalidade autoritária que o cidadão atribui à polícia, mas que está em si — e não percebe. Eis uma das boas explicações para a escalada de populismo e quimeras liberticidas que empesteia o país (e o subcontinente) agora.


Filme: Do Outro Lado da Lei
Direção: Pablo Trapero 
Ano: 2002
Gêneros: Policial/Drama
Nota: 9/10