A comédia mais divertida de 2023 acaba de estrear na Netflix Michael Moriatis / Netflix

A comédia mais divertida de 2023 acaba de estrear na Netflix

Poucos estratos sociais vem acusando com tal veemência o golpe das mudanças comportamentais da virada do século 20 para o 21 que os homens brancos, heterossexuais e de meia-idade, obrigados a se reeducarem sozinhos quanto a aceitar as diferenças, respeitá-las, entender que não têm de gostar ou desgostar de quem professa visões de mundo flagrantemente contrárias, até insultuosas as suas, apenas passar por cima de seus preconceitos, de sua misoginia, de seu racismo, de sua intolerância, e ter claro que liberdade só faz sentido se contemplar a todos, que ninguém está a salvo de abusos.

Feita essa colocação, Jack Kelly tem se esforçado por enquadrar-se na nova ordem que o mundo dita a todos quantos insistimos em sobreviver a estes tempos de ódio, a despeito de critérios raciais, etários ou os menos óbvios. Talvez o seu problema, manifestado aos poucos em “Tiozões”, seja não se submeter aos delírios igualmente fascistas de alguns representantes de grupos minoritários que parecem querer ir à forra com ira análoga ou maior à praticada sem cerimônia até ontem, o que desencadeia questionamentos em que o diretor Bill Burr sabiamente não toca, ou apenas sugere. Não por acaso, Burr, comediante de mão cheia, chama para si a responsabilidade de dar vida a Jack na excelente sátira aos costumes também roteirizada por ele e Ben Tishler, e brucutus que esperam ser recompensados por sua estreiteza de pensamento em algum grau podem ir cantar de galo em outro terreiro.

A Barragem de Mulholland já dá uma pista sobre a ambivalência do suposto progresso de que Jack se ressente, não sem razão. Quando a câmera aterrisa, ele está no quintal de casa, brincando com Nate, o filho pequeno de Dash McCloud, sonho que só foi realizar aos 46 anos — ou, poder-se-ia dizer também, aos 46 minutos do segundo tempo —, e ninguém tem nada com isso. Ele ainda não tinha conhecido Leah, a “mulher certa”, com Katie Aselton oscilando da esposa compreensiva para a mulher sobrecarregada e disposta a atirar tudo para o alto no meio do filme, guinada desenvolvida com toda o detalhamento necessário por Burr.

Enquanto isso, nosso anti-herói aproveita o churrasco que oferece aos vizinhos, inclusive para os desabridamente abelhudos, que metem-se nas recomendações que dá ao garoto e escutam um improperiozinho de leve. Sim, nem tudo que Jack fala ou faz se pode escrever, sobretudo em se tratando de interação com os que o rodeiam, mas ele não é nenhum troglodita. No segundo ato, a narrativa desdobra-se para um conflito geracional exposto de modo bem-humorado, mas assertivo, momento em que Jack, Connor Brody e Mike Richards, os personagens de Bobby Cannavale e Bokeem Woodbine, tentam entender as novas diretrizes do negócio que fundaram há 23 anos, a Trifecta, de confecção de camisas vintage de times passou a uma “empresa de vestuário de gênero e carbono neutros”, agora chefiada por Aspen Bell, o “sociopata hipster” interpretado por Miles Robbins.

“Tiozões” sofre um brutal corte de ritmo na transição de Los Angeles para Las Vegas, onde o trio de cinquentões goza de uma pausa em suas vidas conjugais, mas volta a tempo de retomar os estimulantes conflitos acerca de casamento, filhos, ressignificações profissionais e assuntos correlatos. A propósito, Jack vence seus dilemas existenciais, mas não há nada mais ridículo que um homem entrado em anos falando gírias: esse é o jeito mais objetivo que expressar seu incômodo com o avançar plácido e inclemente do tempo.


Filme: Tiozões
Direção: Bill Burr
Ano: 2023
Gêneros: Comédia
Nota: 8/10