Uma das histórias mais impressionantes do cinema está na Netflix, e você não a assistiu Divulgação / Netflix

Uma das histórias mais impressionantes do cinema está na Netflix, e você não a assistiu

Recurso dos mais mal distribuídos do mundo, talento, definitivamente, não é para quem quer. Todos conhecemos alguém que persegue uma carreira há décadas, se empenha, passa a trabalhar em dois, três empregos com a intenção de pagar cursos para melhor se qualificar e ao fim de uma jornada longa e penosa, só o que se tem é a consternação.

Como explicar o fato de um indivíduo cuja história de vida apontava não só para o fracasso como, muito pior, para a implosão social, patrocinada por um gênio irascível, desagregação da família e a sempiterna falta de dinheiro, palmilhar uma trajetória mais que exitosa, brilhante, paradigma a ser copiado por toda a humanidade? Dentre aqueles que escolhe, Deus teria seus favoritos? Típico projeto de que a televisão se apropria e com que bate recordes de audiência, “Mãos Talentosas: A História de Ben Carson”, originalmente exibido pela TNT em 2009, reacende a urgência de se falar de superação a partir, claro, de aptidões particulares, mas também de dedicação, resiliência, amor próprio, encabrestamento de instintos autodestrutivos e da pretensa superioridade racialista.

A direção de Thomas Carter, aliada à performance de seu ator principal, coroa um rol de intenções que até podem soar megalomaníacas ou esnobes de súbito, mas que passam a ser encaradas sob uma perspectiva mais generosa e mais estimulante, ao menos pela fração bem-intencionada do público.

Cuba Gooding Jr. quase repisa o excelente desempenho visto em “Jerry Maguire” (1996), de Cameron Crowe, pelo qual ganhou o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Na pele de Benjamin Carson, um dos mais célebres neurocirurgiões da História, Gooding confere a dose de humanismo que faltava a um enredo que se sobressai pela justeza dos dados, em especial os que se referem a doenças e procedimentos cirúrgicos, tanto que o roteiro de John Pielmeier muitas vezes mais parece a descrição de um simpósio de medicina, talvez por se preocupar demais em replicar com toda a fidedignidade o conteúdo da descrição da vida e da obra do chefe do setor de neurocirurgia pediátrica do Johns Hopkins Children’s Center, best-seller publicado em 1990.

Levou quase vinte anos até que a trama, com alguns pontos em aberto, fosse vertida para a tela, mas a atuação de Gooding compensa a espera dos simpatizantes do doutor Carson. Embora peque pelo rigor científico, que tende ao farsesco de tão minucioso, a postura de Carter é redimida nos lances em que a figura humana do protagonista é colocada a nu. Muito antes da cena que ancora o longa, a conduta profissional do neurocirurgião que se tornou o melhor em operar crianças é esboçada, no introito, quando um toca-fitas reproduz uma peça de Vivaldi, deslindando aspectos fulcrais do jeito de ser do personagem.

Cerca de oito minutos depois, “Mãos Talentosas” mergulha na abordagem da infância de Carson, um menino visivelmente limitado. Se por lado, o Bennie adolescente, vivido com empolgação contagiante por Jaishon Fisher, se atormenta com o cerco da mãe depressiva, pelo outro não tem com quem contar: o pai saiu de casa para se afundar de vez nas drogas. Apesar de tomadas por seus próprios demônios interiores, Sonya Carson é o porto seguro de afeto e repreensão de que o filho caçula necessita a fim de dar a sua vida um rumo diferente do caminho trilhado pelos pais, que ficaram na escola apenas o tempo necessário para aprender a ler, escrever e decorar a tabuada.

Kimberly Elise leva Sonya para esses dois extremos, o da mãe amorosa e devotada que supera dificuldades que embotariam a vida de alguém mais suscetível, levando em conta o bem-estar dos filhos antes de qualquer outra coisa, e o da mulher que soçobra diante de medos ocultos. Nem quando decide abdicar do convívio dos filhos para tratar a sério a depressão crônica, Sonya esquece de Bennie e Curtis, o filho mais velho, de Tajh Bellow: por meio de cartas ela deixa os dois, principalmente o personagem de Fisher, a par do tratamento e de sua evolução, até que vence a batalha. Mas o final feliz para Bennie ainda há de tardar. Envolvendo-se em confusões por conta das amizades que consegue fazer — inclusive uma que poderia ter lhe rendido alguns anos no reformatório —, ele só escapa graças à teimosia da mãe e da benevolência da escola.

O hipotético oferecimento de uma bolsa integral na academia militar de West Point, que Carson teria recusado, foi, muitos anos mais tarde, assumida como um logro que havia inventado. O caso tornou a vir à baila quando de sua pré-candidatura à Presidência dos Estados Unidos pelo Partido Republicano em 2020, e foi providencialmente suprimido, acentuando o caráter hagiográfico do filme de Carter.

A técnica revolucionária (e arriscada), que permitiu separar gêmeos xifópagos unidos pelo crânio, tornou o médico uma celebridade internacional. “Mãos Talentosas: A História de Ben Carson” comete seus muitos pecadilhos, desculpáveis em se comparando aos do próprio biografado, que se mostra maior que eles também por todo o bom resultado que apresentou ao longo de mais de duas décadas atuando como neurologista especializado em operações de alta complexidade. Mesmo assim, um pouco mais de prudência e modéstia não ter-lhe-iam feito mal nenhum.


Filme: Mãos Talentosas: A História de Ben Carson
Direção: Thomas Carter
Ano: 2009
Gêneros: Drama/Biografia
Nota: 9/10