Primeiro filme latino-americano a levar o Oscar, obra-prima argentina está na Netflix Divulgação / Historias Cinematograficas

Primeiro filme latino-americano a levar o Oscar, obra-prima argentina está na Netflix

Proclamada independente da Espanha em 1816, a Argentina levou quase meio século para ser reconhecida como uma nação livre, em 1863. O caráter aguerrido de seu povo decerto foi determinante para que a Argentina atingisse níveis econômicos consideráveis, o que lhe permitiu conquistar índice de desenvolvimento humano de 0,845 numa escala de zero a um. O superávit do PIB foi convertido da maneira certa: a Argentina se notabilizou por sua população culta, que valoriza a instrução formal e que passou anos sem achar graça alguma em governantes caricatos e ignorantes, o que, lamentavelmente, mudou o seu tanto. Muito do que o país é hoje deve-se aos sete anos em que foi governada por militares, próceres de uma das ditaduras mais sanguinárias da América Latina de 1976 a 1983, e mesmo que não se aprofunde no caráter sociopolítico dos efeitos do absolutismo sobre o povo, como faz Santiago Mitre em “Argentina 1985“ (2022), “A História Oficial” é um dos filmes essenciais para quem procura absorver em que medida pessoas comuns foram afetadas pela supressão das liberdades individuais. Luis Puenzo joga luz sobre o cotidiano de uma família rica de Buenos Aires forçada a lidar com um drama íntimo e coletivo a um só tempo, ao passo que também necessita equilibrar-se entre suas inconsistências, tudo convergindo para um fim quase tão trágico como o dos trinta mil mortos e desaparecidos políticos, o que vem a dar no mesmo — número muito mais expressivo que os 434 cadáveres do regime militar brasileiro (1964-1985), três vezes mais longo.

Alicia suspeita desde sempre que sua vida entrará em parafuso cedo ou tarde, e essa certeza, paradoxalmente, está ligada à filha que tanto ama. Gaby, agora uma criança de cinco anos, chegou em sua casa pela interferência do marido, Roberto, um homem rico e poderoso, amigo das pessoas certas, leia-se dos militares e dos grandes industriais. O roteiro de Puenzo e Aída Bortnik trata das desconfianças de Alicia sem deixar de sublinhar seu comodismo, sua aura de grã-fina muito desembaraçada no papel de mãe de família absorta pela vida doméstica, até que começa a ser invadida por pensamentos sobre a verdadeira origem da menina. Sem a menor dúvida, a performance de Norma Aleandro foi decisiva para o acachapante sucesso de “A História Oficial”, ganhador do Oscar de Melhor Filme Internacional de 1986. Sabe-se exatamente o que se passa pela mente caótica de Alicia, num gradativo processo de deterioração, graças ao perfeito domínio da atriz quanto às emoções conflitivas de sua personagem. Aleandro dispõe somente dos imensos olhos castanhos para convencer o espectador de sua genuína debacle moral — e consegue. Seu trabalho é eminentemente intimista, e só poderia ser dessa forma mesmo. Toda atenção é pouco a fim de se sentir sua angústia, represada em fluxos de consciência obrigados a seguir andamentos bastante diversos. Nas cenas que divide com Analía Castro, Aleandro deixa chegar à superfície a fragilidade de Alicia; quando está com Roberto, vivido por Héctor Alterio, ao contrário, a anti-heroína sucumbe ao peso da certeza cada vez mais sólida de que Gaby, segundo sua intuição maternal, veio de alguém cuja militância pelo fim do governo tirano de Reynaldo Bignone (1928-2018), o último déspota, implicou sua eliminação. O reencontro com Ana, a antiga amiga de escola interpretada por Chunchuna Villafañe, é a peça que faltava para que Alicia não acredite mais quando Roberto lhe diz que Gaby foi adotada sob a estrita observância da lei.

À semelhança do Brasil, os anos de chumbo de nossos irmãos ao sudoeste do rio da Prata tiveram início após um período de intensa rebordosa institucional, quando da ascensão de Isabelita Perón, eleita vice-presidente com o marido, Juan Domingo Perón (1895-1974), ao comando do país em virtude da morte do caudilho. Isabelita concluiu seu mandato em 24 de março de 1976, e é bastante provável que, ao gosto da política como a concebia Perón, articulasse a militância e os correligionários do Partido Justicialista, ainda hoje chamados de peronistas, na direção de um autogolpe — os militares só foram mais rápidos. Não é uma solução, tampouco uma rima, mas passadas quase quatro décadas, os argentinos seguem deixando-se encantar por serpentes bocudas, raposas de bigode grosso e lunáticos cabeludos brandindo motosserras, expoentes do mesmo populismo vulgar que nos humilha aqui nos tristes trópicos. A Argentina chorava, mas também sabia virar a página. Pelo visto, desaprendeu.


Filme: A História Oficial
Direção: Luis Puenzo
Ano: 1985
Gêneros: Drama
Nota: 10/10