Adaptação de clássico da literatura, drama europeu na Netflix é um dos mais vistos da atualidade Bartosz Mrozowski / Netflix

Adaptação de clássico da literatura, drama europeu na Netflix é um dos mais vistos da atualidade

Tragédias marcam de tal forma a existência dos homens que se algum dia conhecêssemos todos a felicidade, todo tempo e ao longo da vida inteira, decerto teríamos passado a uma outra espécie, quiçá mais evoluída ou nem tanto, mas outra, com muito pouco do que nos definia como homo sapiens sapiens, os homens que sabem que sabem. A humanidade se divide entre os céticos, mas que não deixam de acreditar em milagres — inclusive os que não se materializam nunca — e os cínicos, aqueles que atribuem uma aura de sobrenatural a tudo quanto se passa na Terra. “Amor Esquecido”, a releitura de Michał Gazda para um grande sucesso do cinema polonês, mira essas e mais algumas incongruências fundamentais do espírito humano a partir de Rafał Wilczur, um renomado cirurgião que parece arrependido dos maus passos que fizeram-no voltar muitas casas no jogo da vida. Tal como em “The Quack” (1982), sob a batuta criteriosa de Jerzy Hoffman, aqui Gazda também dedica muito do que é narrado ao personagem central, com Leszek Lichota irreconhecível depois que assume o lado sombrio de Wilczur — uma manobra arriscada, que está sempre raspando num dramalhão que pode tresandar irremediavelmente sem aviso. O gosto declarado do espectador da Polônia por histórias, digamos, acima do tom é um fenômeno recente, contudo: antes do filme de Hoffman, o ucraniano Michał Waszyński (1904-1965) dera à luz uma adaptação de eminente sobriedade ao romance de Tadeusz Dołęga-Mostowicz (1898-1939), de onde vêm os três longas. Em “Professor Wilczur” (1938), o Príncipe, como Waszyński era conhecido, optara por um noir quase sufocante, inspirado pelo espírito daqueles dias, já comprometido pela proximidade da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), especialmente nociva para o Leste Europeu.

O roteiro de Marcin Baczyński e Mariusz Kuczewski insiste nas desventuras de Wilczur, mas também faz virem à superfície revelações na pele de outros personagens no transcurso de longos 140 minutos. Desde o princípio, Lichota encarna seu anti-herói dando pistas do que pode lhe acontecer, embora nunca reste muito claro o motivo da guinada que transforma a sina do professor — a briga na taverna pode explicar apenas o trauma físico; no entanto, o que fica parecendo é que Wilczur encontra o pretexto ideal para escapar do mundo e de si mesmo. Nunca há uma transformação por inteiro, malgrado as roupas andrajosas, o cabelo em desalinho, a barba hirsuta desconcertem o público. Debaixo da casca, Wilczur preserva os modos aristocráticos, e, assim, a narrativa ganha um aspecto meio rançoso, como se não pudesse esperar por muito mais que a surpresa que não surpreende. Quando Maria Kowalska entra em cena, a lógica se inverte. Pode-se supor desde sempre que Maria Jolanta é quem Wilczur procura numa tentativa de retomar seu caminho de onde havia parado, mas o desempenho sensivelmente perspicaz de Kowalska chega até a iludir quem assiste quanto à nova relação a ser erigida pelos dois.

Esta versão do livro de Dołęga-Mostowicz passa longe do cult de Hoffman, até hoje exibido com regularidade na televisão polonesa em datas especiais, como o Dia de Todos os Santos ou na Páscoa — como também já aconteceu em outras partes do globo no que toca a “O Egípcio” (1954), de Michael Curtiz (1886-1962), com o qual mantém um parentesco distante. Gazda faz uma boa tentativa, mas seu “Amor Esquecido” não tem muito pelo que merecer espaço na lembrança.


Filme: Amor Esquecido
Direção: Michał Gazda
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 7/10