Wes Anderson vai te hipnotizar: adaptação de conto de Roald Dahl acaba de estrear na Netflix Divulgação / Netflix

Wes Anderson vai te hipnotizar: adaptação de conto de Roald Dahl acaba de estrear na Netflix

Wes Anderson tem conseguido uma proeza nada desprezível. “O Caçador de Ratos”, a segunda adaptação dos contos do britânico Roald Dahl (1916-1990), mantém a excelência técnica vista em “A Incrível História de Henry Sugar” (2023), em que o diretor comprova um espantoso domínio do que acontece em cena, ao passo que materializa o vigor da pena de um dos grandes literatos do nosso tempo.

O resgate da obra de Dahl vem numa hora crucial para a discussão acerca do papel da arte numa era de extremos, marcada pelo desprezo confesso, militante e rematado a tudo quanto possa sugerir aperfeiçoamento estético, sofisticação intelectual ou mesmo um respiro no mais básico expediente da indústria, a despeito de filmes ditos comerciais serem também, em muitos casos, obras de arte sob qualquer aspecto que se queira.

A opção por se limitar o tempo de projeção draconianamente, resultando em 39 minutos para o primeiro curta e menos que a metade aqui, coloca por terra o sofisma que declara a superioridade da opulência, mormente no cinema. Pelo contrário; o que tem ficado patente nessas incursões de Anderson pelas páginas de Dahl é sua vocação para a simplicidade, justamente onde pode criar, experimentar e recriar a seu bom gosto a riqueza delirante do contista.

Nos anos 1940, durante uma das tardes em Wisteria Cottage, rua pacata de Amersham onde morou, Dahl começou a pensar que os becos estreitos da cidadezinha nos arredores de Londres seriam o cenário perfeito para uma trama em que poderia descer ao mais fundo da natureza do homem com toda a segurança, sem sujar-se demais. Anderson principia a história exatamente como se tem em “Claud’s Dog” (1964), o ciclo de narrativas curtas surgido da observação de Amersham e seus habitantes.

Um homem negro está sentado em frente ao jornal “Of The Day”, responsável por eternizar em suas páginas o cotidiano morno do lugarejo. A cidade enfrenta uma infestação de roedores, mas a solução parece muito mais simples do que se pensa. Deslocando-se pelas vielas sem fazer barulho, o personagem-título é o homem ideal para dar cabo do problema, por razões que vão se avultando à medida que o relato avança.

Richard Ayoade, o negro do início, é o editor do diário, e parece apreensivo com a chegada do caçador de ratos vivido por Ralph Fiennes, impressionantemente mudado para o papel. Fiennes encarna o próprio desconforto na pele de um sujeito de cabelos desgrenhados em melenas compridas à volta de uma calva grande, unhas longas e encardidas e dentes amarelados e pontudos, como se os muitos anos no encalço daqueles bichinhos repugnantes tivessem moldado sua fisionomia e seu caráter.

“Para se apanhar ratos, é preciso ser mais esperto que eles, o que não é pouco”, repete o homúnculo deprimente, orgulhoso de seu êxito numa das atividades mais necessárias (e ultrajantes) de sua terra, no que o jornalista e Claud, o dono da oficina mecânica ao lado, são forçados a concordar.

A conversa entre o trio, animoso entre si, mas ainda assim respeitoso, gira em torno das qualidades dos pequenos mamíferos que se tornaram uma praga diabólica em Amersham, até que os três homens descobrem pontos de contato em suas personalidades e suas trajetórias, o que Dahl faz degringolar num desfecho ainda mais asqueroso, momento em que cada um demonstra sua face proibida.

Da mesma forma que em “A Incrível História de Henry Sugar”, Fiennes, Ayoade e Rupert Friend tem sua hora da estrela, contracenando diretamente — inclusive com um rato empalhado que ganha vida mediante computação gráfica, em nada ofensivo se comparado ao que sai da boca daqueles três infelizes. 


Filme: O Caçador de Ratos
Direção: Wes Anderson 
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Comédia 
Nota: 9/10