Um dos filmes mais perturbadores da história cinema em todos os tempos está na Netflix Divulgação / Netflix

Um dos filmes mais perturbadores da história cinema em todos os tempos está na Netflix

A passagem dos setenta anos de Stephen King, em 21 de setembro de 2017, era o estímulo que (não) faltava para que viessem à luz naquele ano alguns filmes que tomam a pena do mestre do terror psicológico por conceito elementar. Este é o caso de “It — A Coisa” com seu palhaço metafísico, dirigido por Andy Muschietti; “A Torre Negra”, saga sobre um delinquente em busca de lugar no mundo, rodado por Nikolaj Arcel; e “Jogo Perigoso”, de Mike Flanagan, thriller que se ocupa das neuras perversas de um casal entediado. Em “1922”, é a vez de Zak Hilditch dizer a que veio.

Hilditch é, de longe, o mais competente desse quarteto em verter em linguagem cinematográfica o sentimento kinguiano, mérito do novelista em boa proporção. Repleto de milharais verdejantes numa paisagem ensolarada, atmosfera que sequer insinua o horror da trama que se vai desenrolar por mais de cem minutos no cenário que ganha cores distópicas idealizado pelo diretor de fotografia Ben Richardson, do justamente incensado “Indomável Sonhadora” (2013), de Benh Zeitlin, “1922” parecia implorar para ver a luz. O requinte estético do longa é uma de suas qualidades mais soberbas — e Hilditch mostra-se particularmente astuto ao se valer dela —, mas o elenco diminuto, capitaneado por Thomas Jane, é o que faz a história sair do chão.

Seu Wilfred James é um homem que se despedaça. O rancheiro é o dono de mais de oitenta acres de lavoura em Nebraska, no centro-norte americano, uma propriedade que passa de pai para filho há algumas gerações. Mas seu poder tem limites: ele não pode resolver por si só nada que se refira ao destino das terras, uma vez que casara-se com Arlette, vivida por Molly Parker, em regime de comunhão de bens e ela, que herda do pai um lote só seu, quer vendê-lo, aproveitando para convencer o marido a passar adiante a fazendola em que moram a fim de que possam dividir o montante e, então, ir cada qual para o seu lado. O apego de Wilfred pelo lugar em que fizera a vida, onde conhecera a mulher que agora o quer abandonar, no qual os dois criaram o filho, Henry, de Dylan Schmid, extrapola a loucura. A mínima sugestão de que possa vir a ficar sem a vida como a entende adequada é para o protagonista uma tortura que o acerta em cheio, desencadeando nele uma pulsão de morte, a única forma de resolver um problema tão severo. Não demora muito e Wilfred dá andamento a seus planos, ajudado por Henry. Arlette já não é mais um empecilho a sua felicidade.

O roteiro de Hilditch remete aos contos de horror de escritores menos dados a firulas como Edgar Allan Poe (1809-1849), caso também do próprio Stephen King, mas vai escalando a pedreira da questão moral por trás do conflito anímico de Wilfred, com cuidado e sem capitulações, e nisso o enredo até ombreia com o Dostoiévski de “Crime e Castigo” (1866). Aos poucos, a consciência do rancheiro se impõe sobre ele e a culpa pelo que fizera a Arlette o massacra, especialmente depois que Henry sai de cena e é obrigado a ficar só com seus demônios. Num primeiro momento, essas lembranças diabólicas habitam apenas seu espírito atordoado, mas sem demora se assenhoreiam da casa sob a forma de ratos que perdem tudo, metáfora fulminante do ponto de vista imagético que a performance de Thomas Jane, pele curtida do trabalho braçal na roça e um sotaque do Sul que infunde respeito, sabe fazer ressoar muito bem.

À medida que “1922” vai esclarecendo seus mistérios e Hilditch convence o espectador quanto à fraqueza essencial de Wilfred, que acaba não tolerando mais a perseguição de seus fantasmas e se hospeda num acanhado quarto de hotel, o filme começa a preparar-lhe o desfecho para a arapuca em que se colocara, fazendo deste um terror psicológico como poucos no cinema. Incapaz de lidar com o mal que provocara, muito maior que suas forças, Wilfred torna-se um eterno refém de seu pânico, e se entrega de vez à insânia sem remédio.

Fazendo alusão à pouca fibra moral de um homem na meia-idade, desditoso, que soçobra exatamente por não saber o que desejar, “1922” também se reporta a “O Iluminado” (1980), de Stanley Kubrick, mantendo o vigor de sua própria história. Zak Hilditch entrega uma das melhores adaptações de Stephen King, tocando num de seus assuntos-fetiche: casamentos que se prolongam além da conta, por puro comodismo de parte a parte, e que acabam redundando em ocasos melancólicos (e trágicos) como o final do longa.


Filme: 1922
Direção: Zak Hilditch
Ano: 2017
Gênero: Terror/Drama
Nota: 9/10