Proibido falar com o motorista, pisar na grama e defecar no carpete do STF

Proibido falar com o motorista, pisar na grama e defecar no carpete do STF

Carnegão andava sumido da academia. Da academia de ginástica, frise-se. Seria demais esperar que “Carnegie, O Juiz” — mais conhecido entre os reles mortais como “Carnegão”, por causa da compleição física descomunal, do bucho robusto e da retórica quase sempre inflamada — fosse aceito numa academia de letras destinada a intelectuais fracotes, pero, imortais. Ele morria de preguiça de tomar em suas mãos um clássico da literatura, inclusive, há tempos não sentia o indefectível aroma de tinta da gráfica, pois, restringira suas leituras à famigerada lista de doze livros obrigatórios do vestibular de 1988, em Bazófia, ocasião em que fora aprovado em primeiro lugar para o curso de Direito.

Carnegão escafedera-se. Ninguém dava notícias do grandalhão. Não podia negar que o sumiço do faroleiro me deixava deveras aliviado. Durante o agitado período da campanha eleitoral, Carnegão vociferava pelos cotovelos, pelas esteiras e pelos aparelhos de musculação, certos impropérios, incontáveis teorias da conspiração que eram bastante populares nas “bolhas” da direita extremista que defendia, dentre outras sandices, a manutenção do status quo, restringindo as castas pobretonas ao seu lugar de origem, ou seja, a linha da miséria de onde nunca deveriam ter saído. E a maior parte dos miseráveis nunca saía mesmo: morria de doença infectocontagiosa ou acabava presa.

Eu era um aborto, um gato pingado, um zé-ruela, um dos raros frequentadores assíduos daquele reduto musculoso acometido por resvalos socialistas. Não frequentava as listas de regabofes. Também não tinha paciência com conversa fiada, não gostava de resenhar com os coleguinhas enquanto malhava os meus bíceps esquálidos. Mesmo evitando gastar saliva com patriotas terrivelmente maquiavélicos, mesmo sem eu ter verbalizado a intenção de votar no candidato progressista da esquerda — última cartada contra o golpe militar que se prenunciava —, Carnegão esbravejou numa tarde modorrenta que, mais do que cecê de sovaco, sentia o cheiro de petralhas no ar, fosse lá o que o adjetivo significasse. Eu nunca tinha me filiado a uma escola de samba, a um trisal, muito menos, a um partido político. Nada contra quem se dispunha a se prostituir por uma causa nobre. Sempre tive dificuldade de suportar os dogmas. Contudo, era líquido e certo, como um shake de whey protein, que eu não votaria num parvo da extrema direita nem que tivesse uma faca ao pescoço, nem que a minha saudosa sogra — saudosa para a Receita Federal — escapasse do túmulo para me fazer um último pedido.

Ouvia, a contragosto, as falácias do ‘meretríssimo’, enquanto imaginava o quanto estaria ferrado se um dia caísse na comarca de um sujeito como aquele. Muitos colegas de malhação consideravam Carnegão um ícone engajado, um pimpão bem-sucedido, um juiz justiceiro, um sujeito viajado, um cristão empedernido, um boa-praça, um meninão fluente na língua inglesa, um patriota de quatro costados que não tinha medo de explicitar a sua visão fascista de mundo, como uma rajada de bosta da cloaca de um pombo da Piazza San Pietro. Sabia-se que o fanfarrão já estava no seu terceiro casamento. Unira-se, havia pouco tempo, devidamente salvaguardado pelo escopo de um contrato matrimonial muito bem engendrado por técnicos do tribunal de justiça, a uma mocinha com nem-bem-somados 22 aninhos, dois-patinhos-na-lagoa, uma teteiazinha, como ele costumava se vangloriar, sempre no diminutivo, valendo-se de gírias démodé apropriadas para um bon-vivant calvo que já tinha ultrapassado, com folga, a sexta década de vida. Gabava-se também dos vários títulos, troféus e medalhas conquistados ao longo de anos de competições de tiro-ao-preto, ou melhor, de tiro-ao-prato e das caçadas aos comunistas, quer dizer, das caçadas aos javalis que destroçavam as lavouras de milho transgênico do agronegócio. Ainda mandava bem como um esportista da luta livre, durante certames em que esbugalhava os adversários de intestino preso nos tatames de salame onde valia tudo, exceto, beijar na boca quando alguém estivesse olhando.

Carnegão era forte, torpe e insurrecto como um bisão. Se nos defrontássemos numa hipotética tentativa de suicídio da minha parte, ele poderia facilmente me amassar com um de seus punhos de bigorna, golpeando-me de cima para baixo, como o coiote do desenho animado. Reacionarismo não tinha a menor graça; defesa da ditadura, também não. Eu tinha prometido me vingar daquele tipo de gente nas minhas crônicas. Eu era um escritor mal dito, mal lido e mal pago. Além de fazer caretas enquanto levantava halteres de peso patético, eu fora obrigado a escutar o Carnegão cantando de galo, defendendo aberrações políticas do tipo bloquear as tripas intestinais e as estradas federais, fechar o Congresso Nacional e os prostíbulos familiares, dissolver o STF e todas as pastilhas de vitamina C vigentes em território nacional, promover a volta imediata do trema à língua portuguesa e dos militares ao Forte Apache.

Enquanto me distraía com bundas sorridentes que circulavam pelo quadrado do perímetro esparramando névoas invisíveis de feromônios, ficava me perguntando como é que um sujeito como “Carnegie, O Juiz” tinha passado no exame pirotécnico, ou melhor, no exame psicotécnico. O candidato presidencial apoiado por Carnegão tomou peia nas inauditáveis urnas de papel higiênico. Desde então, o brutamontes vazou do spinning. Ensimesmado, eu sentia cócegas na garganta e sorria por dentro com a suave sensação de vitória. Cheguei a desconfiar que o seu nome constasse na propalada lista de investigados, como um dos financiadores da fracassada intentona do dia primeiro de abril, quando uma horda movida pelo feriado das Fake News invadiu os três pratos de trigo dos três tigres tristes, ou melhor, os três prédios principais dos podres poderes em Bazófia, para xingar o Caetano Veloso, rasgar a Carta Magna e, de forma animalesca, primitiva e cavernosa, defecar sobre as indefectíveis mesas de peroba da União. Ô povo cara de pau…

Como escreveu Bukowski, o Velho Safado, “Algumas pessoas vão lhe encher o saco, vão bater na sua porta e sentar numa cadeira e consumir o seu tempo sem lhe acrescentar nada. Quando muitas pessoas nulas aparecem e seguem aparecendo, você tem que ser cruel com elas, pois elas estão sendo cruéis com você. Você tem que botá-las pra correr…”. Eu fazia isso escrevendo.