Drama europeu na Netflix é comovente história real sobre coragem e compaixão Mark van Aller / Dutch FilmWorks

Drama europeu na Netflix é comovente história real sobre coragem e compaixão

Os horrores sobre a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) rendem, tanto boas histórias, em que a originalidade e o destemor do mote central despertam ainda mais o interesse pelo assunto, como dramalhões intragáveis, melosos, em que a gravidade do que é contado resta perdida em meio ao desdém com a verdade dos fatos. “O Banqueiro da Resistência” está na primeira categoria, por diversos fatores. Jarom Lürsen faz um belo trabalho mesmo sem nunca ter manifestado nenhuma grande predileção por elaborar um filme que expusesse as chagas de um conflito que se arrasta por seis anos, mata entre cinquenta e 56 milhões de pessoas em batalha, incluindo-se civis, além de uma legião de desgraçados composta por um número inexato, mas vultoso: de dezenove a 28 milhões acabaram sucumbindo à fome e às doenças que vieram da falta de recursos naturais, da destruição do saneamento básico e do apagão tecnológico. E tudo isso tomando por base uma falácia, um argumento mentiroso e vil que só pretendia excluir o diferente, um povo que não por acaso vencera, graças ao trabalho, ao empenho intelectual, à ousadia de fazer escolhas até então impossíveis.

Lürsen foi extremamente corajoso ao reproduzir na tela a vida de Walraven van Hall (1906-1945), um banqueiro que cria junto com o irmão mais velho, Gijsbert van Hall (1904-1977), o Gijs, um fundo que tinha por meta suprir as necessidades da população enquanto durasse o reinado nazista na Holanda, arriscando a carreira e a própria vida. Vivido por Barry Atsma, Wally, para conseguir ser bem-sucedido, forma uma equipe que leva a cabo um engenhoso plano de arrecadação de dinheiro com a venda de ações a preços inferiores aos do mercado, resgatáveis após o encerramento da guerra. Inicialmente contrário à aventura humanista do irmão, pelo medo de serem descobertos, mas também presa da ameaça da falência e da prisão, Gijs, interpretado por Jacob Derwig, passa a atuar como um agente duplo, sabendo com a antecedência necessária os próximos passos das autoridades holandesas, alinhadas a Hitler — que não demoraram a fechar o cerco. O mito da ascendência judaica dos Van Hall, que termina por retroalimentar o antissemitismo de maneira criminosa, é desconstruído no fluido transcorrer dos 123 minutos. Os irmãos sofreram algumas tentativas de linchamento moral ao longo da História, como se só tivessem se envolvido na defesa dos judeus holandeses em causa própria — o que seria muito justo, aliás —, mas ficou provado que eram europeus e poderiam ter fugido se assim o tivessem desejado. O que os impediu foi o mais translúcido sentimento de dever cívico, fundado num inusual amor pela condição humana, desinteressado, apenas por entender que o delírio nazista já havia produzido ruína o bastante.

Por meio do Reichskommissariat Niederlande (Comissariado do Reich para os Territórios Ocupados da Holanda), a Alemanha, sob o comando de Adolf Hitler (1889-1945), garantia que o país permanecesse subjugado por suas tropas durante a Segunda Guerra. A realidade de se ver reprimido por líderes cruéis, que não se pejavam de inventar motivos os mais esdrúxulos a fim de perseguir e matar opositores ao regime, chegou a amedrontar Wally, mas o banqueiro acabou por se tornar a própria encarnação do combate ao nazismo em sua terra. O caçula dos Van Hall foi obrigado a se valer de cinco codinomes, cada um usado em circunstâncias e lugares específicos, o que lhe garantiu sigilo acerca de sua verdadeira identidade por anos. Episódios controversos da saga de Wally e Gijs — como o suposto levante armado contra os soldados germânicos, o que os descendentes dos protagonistas negam categoricamente — são mantidos a distância, mas o longa prima pela fidedignidade na medida em que assinala a relação terna que mantinham, malgrado as diferenças iniciais quanto a aderir ou não ao movimento anti-Hitler. O caráter de filme de ação de “O Banqueiro da Resistência” ganha ênfase com o registro do maior assalto da história dos Países Baixos. A sequência foi gravada no mesmo banco que os irmãos Van Hall roubaram sete décadas antes, o que demandou providências específicas. O cronograma de filmagem teve de atentar para o rigor quanto ao cumprimento dos prazos, devido ao grande número de locações. Lürsen rodou por dezoito cidades ao longo de 36 dias, filmando em toda a Holanda e em parte da Bélgica, sendo necessário interromper o tráfego para fazer uma tomada de perseguição, por exemplo.

Capturado pelas tropas de Hitler, Walraven van Hall foi executado em 12 de fevereiro de 1945, dois dias depois de seu aniversário de 39 anos. Antes um herói anônimo mesmo para seus patrícios, Wally teve o merecido reconhecimento — com estátua em sua memória e tudo. Riphagen às avessas, o banqueiro devolvia aos judeus o que lhes era espoliado, e isso vai muito além do vil metal. O criminoso abjeto, retratado no filme homônimo dirigido por Pieter Kuijpers, lançado em 2016, logo teve suas façanhas diabólicas cantadas por toda a Europa, enquanto ao Van Hall mais novo era devotado um vergonhoso silêncio. Gijsbert van Hall foi agraciado com a sorte de saber-se querido por seus compatriotas — elegeu-se prefeito de Amsterdã, e ficou no cargo entre 1957 e 1967 — e envelhecer, mas não assistiu ao fascínio, póstumo, dos holandeses pelo irmão.


Filme: O Banqueiro da Resistência
Direção: Joram Lürsen
Ano: 2018
Gêneros: Guerra/Drama
Nota: 8/10