Bula de Livro: O Marcador de Página, de Sigismund Krzyzanowski

Bula de Livro: O Marcador de Página, de Sigismund Krzyzanowski

Li “O Marcador de Página”, de Sigismund Krzyzanowski, e descobri um grande expoente da ficção científica/fantástica russa. Krzyzanowski, que parece uma mistura de Kafka e Borges, se autodenominava “conhecido por ser desconhecido”. Não publicou livros em vida, mas ainda bem que seus contos chegaram até nós, pois são carregados de uma inventividade única. No mundo fantástico de Sigismund duas coisas são importantes: o humor e a crítica social. Suas personagens estão às voltas com o limite de suas possibilidades. As tiradas sarcásticas são ao mesmo tempo espirituosas e denunciadoras. Krzyzanowski denuncia a formalidade excessiva, a burocracia e os costumes desprovidos de crítica.

O Marcador de Página, de Sigismund Krzyzanowski
O Marcador de Página, de Sigismund Krzyzanowski (Editora 34, 160 páginas)

O primeiro conto é uma ideia, redundantemente, fantástica. Uma substância é capaz de aumentar o tamanho dos quartos: “O quadraturin”. Um vendedor ambulante oferece uma amostra grátis de um líquido que, corretamente usado, é capaz de modificar o volume de um ambiente, torná-lo mais amplo e mais cômodo. Um desejo de muitos, visto que os cubículos, ao estilo daquele de Raskólnikov, claustrofóbicos, são moradas comuns.  Esse conto é sobre consequências. No equilíbrio energético, como é possível que um sistema obtenha vantagem sem compensação? Há um preço a pagar. O conto evoca “A Metamorfose”, de Kafka, como uma extensão do impacto inusitado do início. Termina onde a novela do escritor austríaco se desenvolve: no desespero em acostumar-se com o improvável.

O conto homônimo é um manual para escrever literatura. É mais! Nele uma personagem curiosa e inédita é desenvolvida com peculiaridade. Krzyzanowski concebe o “Caçador de temas”, que não é apenas uma personagem ímpar, investigadora, que, por ser atento, olhos e ouvidos precisos, ao se esbarrar com situações, elabora temas e cria histórias para contar. Ele é um entendedor do texto, da geometria da palavra, mas sofre da angústia de não concretizar o conteúdo em um conjunto harmônico eficaz. Aqui também há o objeto como personagem. É um conto que explora a natureza inteligente das criaturas inanimadas.

O melhor conto é um achado! “O Carvão amarelo” é absolutamente erudito e científico. Krzyzanowski desenvolve as bases conceituais para um método, cujo objetivo é: explorar a raiva como fonte de energia duradoura. Ele apresenta pensadores virtuais e anônimos em compêndios investigativos formidáveis. A explicação para as guerras é especialmente curiosa e interessante. Mais intensa e elaborada é a ideia dos “pares ópticos”. Comparando, metaforicamente, cônjuges às estrelas duplas, Jules Chardon avalia as possibilidades em matrimoniologia. Para se obter o máximo de raiva é necessário combinar casais de forma que “a porcentagem de pares conjugais ópticos deve ser gradualmente aumentada até chegar a cem por cento”.

O texto é riquíssimo em verbetes-síntese, que resumem os conceitos da prática do carvão amarelo e suas consequências na sociedade, tais como: “bilificação da vida”; “O coração contra o fígado”; “raiva cinética”. Ou máximas impositivas edificantes e necessárias, como: “Quem não odeia não come” ou “Uma vez um é igual a um”.

Não termina aqui, mas o ensaio ficaria enorme se dedicássemos mais linhas para os outros contos, que são ótimos. A não ser que usássemos uma substância, ao estilo do Quadraturin, que esticasse o texto, em palavras, sem que a regra do Editor (até 3000 caracteres) fosse violada. Mas haveria consequências.


Livro: O Marcador de Página
Autor: Sigismund Krzyzanowski
Tradução: Maria Aparecida Botelho Pereira Soares
Páginas:  160 páginas
Editora: Editora 34
Nota: 9/10