Um dos filmes mais perturbadores em 130 anos de cinema está na Netflix e você não assistiu Divulgação / Universal Pictures

Um dos filmes mais perturbadores em 130 anos de cinema está na Netflix e você não assistiu

A cabeça do homem é tão vasta, feita de tantos enigmas e dotadas de meandros tão perigosos que nunca chega a ser escandaloso que qualquer um mergulhe na fundura dos pensamentos que julga só seus e não volte. M. Night Shyamalan é mestre na arte de revirar as plataformas mais inacessíveis da alma humana, e em “Fragmentado” o diretor encontra o justo argumento a fim de investigar pontos os mais obscuros da personalidade de alguém que flutua entre a multidão que habita seu espírito atormentado e uma natureza desabridamente bestial, indefeso sob essas duas circunstâncias, descobrindo em si a força malévola que o ampara em seus desatinos, na verdade ansiando por um salvador, por quem tenha coragem o bastante para resgatá-lo das trevas untuosas que eivam tudo de melancolia e doença, mas também acostumando-se a ser o soberano de um domínio sem fronteiras e sem lei.

Para chegar a Kevin Wendell Crumb, o antagonista de onde brota um elenco à parte, Shyamalan desenvolve em seu roteiro a subtrama de uma menina sem norte, que vai ao aniversário da colega com quem não partilha nenhuma afinidade e desperta sem querer, mal-estares à primeira vista irrelevantes. Casey Cooke, a garota-problema de Anya Taylor-Joy, parece gostar de ser a sombra nos poucos ambientes que frequenta, e o diretor reserva para ela a missão que passa a justificar o filme, que não seria necessária caso a festa acabasse mais tarde ou mais cedo ou se o pai de Claire Benoit, a patricinha bem-intencionada vivida por Haley Lu Richardson, tivesse estacionado o carro ou mais longe ou mais perto, ou ainda se não tivesse o hábito de aceitar gentilezas de estranhos. Como a vida é feita das decisões que tomamos, não do que seria conveniente escolher, Kevin entra no filme, reforçando a teoria de que a jornada de cada indivíduo obedece a uma lógica muito particular; é esse vaivém ambivalente e multifário que, afinal, dá algum sentido à vida triste da mocinha interpretada por Taylor-Joy.

Um James McAvoy vigoroso, maduro, pleno, equilibra-se sobre algumas das extravagâncias do universo mental de seu antagonista — o texto de Shyamalan fala em 23 variações de temperamento, cada qual com suas idiossincrasias, seus medos, suas neuroses e ainda um lado menos denso, aspectos que perfazem um todo coeso, ainda que, por óbvio, não se possa ter uma mostra detalhada de todas essas constituições tão hermeticamente sobrepostas entre si. Num trabalho filigranado e extenuante ao corpo e à alma, McAvoy deixa vir à superfície Hedwig, uma menina de nove anos, doce e meio insolente, e Barry, um nova-iorquino de trinta e poucos, meio afetado e escravo da moda. Os dois, além dos outros 21, são liderados por Dennis, o verdadeiro alter ego de Kevin, que mantém Casey, Claire e Marcia, de Jessica Sula, encerradas num quarto revestido de pedras. Shyamalan lança mão de todos os recursos que se lhe apresentam a fim de traçar um perfil da loucura sob perspectivas as mais diversas; nesse ponto, Karen Fletcher, a psiquiatra idosa vivida por Betty Buckley, representa a força que se julga capaz de bater o facínora, mas o encerramento atesta o que já se havia deslindado na abertura, e Kevin é contido pelo único adversário contra o qual nada pode.


Filme: Fragmentado
Direção: M. Night Shyamalan
Ano: 2016
Gêneros: Thriller/Terror
Nota: 8/10