A morte cai bem para muitos. Os orientais, por exemplo, nunca viram o menor inconveniente em, de uma forma ou de outra, postergar a indesejada das gentes com suas tão idiossincrásicas tradições, como o taiwanês Cheng Wei-hao mostra no excelente “Um Romance do Além”, aproveitando para juntar à sátira de costumes uma discussão sempre bem-vinda e cada vez mais necessária. Wei-hao tem se revelado um mestre precoce em desmistificar alguns dos hábitos mais obscuros de seu povo — obscuros para nós —, dando um jeito de não permitir que seu trabalho resvale na mesmice e na irrelevância. Aqui, como já fizera em “The Soul” (2021), o cineasta reafirma seu talento com mais uma de suas preciosidades, uma história que também padece de uma maravilhosa esquizofrenia artística. Quanto maior a natureza única dos temas sobre os quais se debruça, maior a chance de nos identificarmos com eles. E não são raras as circunstâncias em que, impressionantemente longe daquele universo, sintamos como se o enredo fosse parte de algum momento de nossa vida.
As coberturas das singelas casas do pacato subúrbio de Taiwan, observadoras privilegiadas da rotina da cidade distante, começam em varandas com lanternas que pedem respeito. No cenário sobrenatural que o roteiro de Cheng e Sharon Wu prepara, vela-se um corpo muito discretamente, até que algo sai do tom. Uma senhora corta uma melena e uma unha do cadáver e deposita esses restos mortais num envelope vermelho. O diretor incrementa a aura de mistério fazendo com que um cão uive, antes de cortar para uma academia de fazer inveja a uma boneca fora da caixa, toda iluminada em rosa, exclusivamente frequentada por homens, onde, um e outro exercício, dois rapazes começam a flertar. Tudo se passa com sutileza, mas não a ponto de o público leigo não se dar conta do que vai acontecer. Um deles, Wu Ming-han, um policial homofóbico que finge se interessar pelo outro para constrangê-lo e exorbitar de suas atribuições obrigando sua vítima a mostrar o que tem na bolsa, quando parece que, enfim, vai saciar seu apetite fascista. Cheng cria para Ming-han uma casca incômoda, até repulsiva, e Greg Hsu tira dela todo proveito que consegue, inspirando, claro, a ojeriza de quem assiste, mas deixando certa margem para fazer crível a guinada de seu personagem. Fugindo da estereotipia, Hsu leva Ming-han para o eixo do conflito desse homem infeliz, duro, frustrado, sequioso por chefiar uma averiguação que repercuta nos meios de comunicação, mas presa de expedientes como o usado na academia para mostrar serviço. Apanhar do chão o envelope mencionado no início, pensando se tratar de provas sobre um crime escabroso definitivamente não o ajuda. Trata-se de um dos ritos do casamento fantasma, no qual parentes do morto garantem que não o desencarnado vague sozinho pelo outro mundo. Mao Pang-yu era gay, logo seu par tem de ser um homem. E adivinhem logo quem?
Ao longo dos 130 minutos de filme, Hsu e Austin Lin — ou o que resta dele — compõem essa parceria que, por óbvio, jamais se consuma, mas comove. É essa vesana sutileza, das coisas simples, mas refinadas do modo mais inaudito, que encanta em tudo quanto Cheng Wei-hao faz. Sem pretender catequizar ninguém.
Filme: Um Romance do Além
Direção: Cheng Wei-hao
Ano: 2023
Gênero: Drama/Mistério
Nota: 8/10