Filme na Netflix acalmará sua sua alma e te fará acreditar em milagres Divulgação / Vision Films

Filme na Netflix acalmará sua sua alma e te fará acreditar em milagres

Não é de hoje que o cinema manifesta seu fetiche para com bonitões meio perdidos, dissipando a vida de bar em bar, bebendo muito, vivendo pouco, mas preservando aquela altivez natural, certos talvez de que algum milagre está sempre a caminho. Os filmes reservaram a Paul Newman (1925-2008) grande parte desses papéis, e em “O Que de Verdade Importa”, ele ocupa lugar de destaque mesmo sem jamais aparecer. A história do mexicano Paco Arango presta um tributo ao protagonista de “O Indomado” (1963), dirigido por Martin Ritt; “Rebeldia Indomável” (1967), levado à tela por Stuart Rosenberg (1927-2007); e “O Indomável – Assim É Minha Vida” (1994), de Robert Benton — que apesar dos títulos semelhantes tem cada qual sua marca própria —, intenção revelada somente no último segundo, e que como se vê, não se dirige exatamente a sua figura, mas ao espírito de liberdade e nobreza que encarnou como poucos, nos filmes e fora deles.

Arango conduz seu roteiro preservando o mistério o quanto consegue. Primeiro, um homem volta para casa depois de um dia de trabalho, cumprimenta a esposa que não o esperava e os dois já engatam o diálogo que prepara o terreno para a entrada do personagem que de fato interessa na cena. Alec Bailey, um engenheiro eletrônico que aprendeu a se conformar com a instalação de receptores de sinal de televisão por assinatura, conserto de rádios de pilha e qualquer outra atividade que lhe exija o bom uso das mãos aliado à perícia com fios e transistores, não se importaria tanto em deixar a casa de suas clientes, mulheres de honra duvidosa que valem-se da ausência do marido para realizar fantasias inconfessáveis, se não acabasse havendo sempre um contratempo qualquer — dessa vez ficou sem um dos pés do sapato. Quando regressa à sede da firma que o emprega, desaba-lhe o mundo por cima, e Oliver Jackson-Cohen elabora aos poucos essa inadequação fundamental do personagem, até que Alec chega mesmo à beira do precipício, com mafiosos do Leste Europeu no seu encalço. É essa a hora em que o milagre acontece.

Claro, não é todo mundo que recebe a proposta de ter todas as dívidas que somam quase noventa mil libras quitadas por um parente que mal conhece, mas o faz-tudo profissional ganha essa colher de chá do destino, certamente por alguma razão muito forte. Como não existe almoço grátis — ainda menos os regados a escargot e vinho branco da Borgonha —, o tio Raymond Heacock, seu candidato a redentor, está disposto a salvar a pele do sobrinho, desde que Alec concorde em deixar Londres e ir viver em Lunenburg, na Nova Escócia, território composto por uma península e um conjunto de ilhas na Costa Atlântica do país. Não há nada de tão intolerável assim na proposta de Heacock, que aparece e some da narrativa na pele de Jonathan Pryce, malgrado o anti-herói de Jackson-Cohen vá morar numa casa modesta, porém confortável, e tenha de locomover-se a bordo de uma caminhonete velha, mas funcional.

O diretor-roteirista elabora o argumento da mudança de vida juntando-lhe os trechos em que começa a destrinchar o dom oculto de seu protagonista, conectando-o a sua aptidão para recuperar eletrodomésticos. Na iminência do desfecho, a amizade com Cecilia, a veterinária de Camilla Luddington, desabrocha, enfim, num amor romântico e correspondido à altura — depois que a moça inventara uma desculpa incontornável e algo excessiva para que ele não a procurasse —, só não é mais estimulante que a relação que passa a manter com Abigail, sucumbindo a um câncer terminal. Dentre a pletora de tipos apresentados por Arango, Kaitlyn Bernard é a que melhor incorpora o espírito do que fica inequivocamente expresso na conclusão, quando Newman é lembrado com a devida justiça.


Filme: O Que de Verdade Importa
Direção: Paco Arango
Ano: 2016
Gêneros: Drama/Romance
Nota: 7/10

Giancarlo Galdino

Depois de sonhos frustrados com uma carreira de correspondente de guerra à Winston Churchill e Ernest Hemingway, Giancarlo Galdino aceitou o limão da vida e por quinze anos trabalhou com o azedume da assessoria de políticos e burocratas em geral. Graduado em jornalismo e com alguns cursos de especialização em cinema na bagagem, desde 1º de junho de 2021, entretanto, consegue valer-se deste espaço para expressar seus conhecimentos sobre filmes, literatura, comportamento e, por que não?, política, tudo mediado por sua grande paixão, a filosofia, a ciência das ciências. Que Deus conserve.