Filme alucinante e acelerado, na Netflix, fará seu coração sair pela boca Jasin Boland / Netflix

Filme alucinante e acelerado, na Netflix, fará seu coração sair pela boca

Ninguém consegue manter-se indiferente diante de uma trama cuja anti-heroína passa mais de cem minutos aparentando uma força que, na verdade, não tem. Sendo ainda mais preciso, “Kate” é a história não de uma, mas de duas garotas particularmente sofridas que o francês Cedric Nicolas-Troyan transforma, valendo-se do ótimo roteiro de Umair Aleem, numa espiral psicodélica de sequências aceleradas de crimes equilibradas com diálogos reveladores. Marca registrada do trabalho de Nicolas-Troyan, os efeitos visuais, elaborados por uma equipe de três centenas de técnicos, têm sua parte de mérito na excelência do filme, porém o segredo aqui é mesmo o bom senso. “Kate” dispõe tanto de lances em que qualquer palavra fica parecendo uma imperdoável extravagância como de momentos em que é necessário que todos, personagens, diretor, elenco e audiência, paremos um instante.

Um caminhão rosa chega a Osaka, no sul da ilha de Honshu, trazendo a personagem-título. Kate é uma mulher que padece dos traumas que a história elucida aos poucos, e Mary Elizabeth Winstead os absorve também com muita cautela. Já na primeira sequência, quando a edição de Sandra Montiel e Elísabet Ronaldsdóttir capta a fisionomia endurecida da antimocinha, fica claro que ela não está mais tão o segura do que anda fazendo da própria vida. Encarregada de dar cabo de um chefão da Yakuza, a máfia japonesa, ela vacila, mas por um motivo imponente: junto com ele, está Ani, sua filha, a rebelde com cada vez mais causas, vivida por Miku Martineau. Atiradora de elite, formada desde menina por um mestre americano do ofício, o mais próximo do que entende por família, Kate espera para além do que orienta o comando central, mas dá um tiro certo.

A figura desse pai-chefe-mentor cabe a Varrick, o V, outro dos tipos nebulosos e bem-humorados de Woody Harrelson, que, como sói acontecer, acaba por roubar a cena — malgrado vá aparecer mesmo na transição do segundo para o terceiro ato. Enquanto isso, Nicolas-Troyan propõe um salto de dez meses, e o filme continua agora em Tóquio, para onde Kate se desloca a fim de reencontrar Ani, imbuída de propósitos nada edificantes. O diretor demonstra habilidade ao conseguir manter o eixo narrativo no fio da navalha ao passo que desenrola subtramas estimulantes, a exemplo da que apresenta o lado mulher de sua protagonista (ou fêmea, como seria mais apropriado para ela). A personagem de Winstead é vista bebendo sozinha num bar da capital nipônica — momento em que “Kate” deriva para uma interessante construção do perfil psicológico dessa matadora arrependida, e surgem falas com V que tocam a sua necessidade de apenas fazer tudo como todo mundo faz, casar-se, ter filhos, morar numa casa com cerquinha branca —; como por encanto, surge-lhe Stephen, de Michiel Huisman, que nunca começa um flerte com ois e apresenta-se logo. Mas ela é uma moça dada a tradições.

O envolvimento dos dois só não é mais catastrófico porque Kate retarda o efeito literalmente tóxico da relação reencontrando Ani perdida numa boate esfumaçada. Conscientemente ou não, o filme se deixa tomar pela aura do romance entre duas mulheres, nunca consumado, até que o diretor recobra o gancho original e essa deambulação conceitual cede lugar a pontos de vista mais digestivos e na ordem do dia, como sororidade e autonomia feminina. O núcleo dos mafiosos japoneses, encabeçado por Jojima, o gângster homossexual de Miyavi, impressionante como sempre, e Kijima, de Jun Kunimura, porta-voz das revelações a que a protagonista deveria chegar por si mesma, reforçam a ideia de potência e suavidade defendida por Nicolas-Troyan no início, sem prejuízo dos litros de sangue que julga ter de derramar para fazer com que ninguém tire conclusões precipitadas sobre figuras tão plenas de nuanças.


Filme: Kate
Direção: Cedric Nicolas-Troyan
Ano: 2021
Gêneros: Thriller/Ação/Drama
Nota: 8/10