Ridley Scott se propôs um desafio com “Gladiador”: convencer a audiência a abster-se um pouco do vício nos demasiados efeitos especiais finamente trabalhados da computação gráfica e se transportasse para a Roma Antiga deixando levar antes de mais nada pela imaginação. Esse universo paralelo de um tempo bárbaro, em que eram comuns arenas no centro da cidade como palco de espetáculos em que escravos e feras lutavam entre si, até que apenas um restasse com vida, serve de porto de uma jornada na qual Scott constrói um épico pós-moderno sobre honra, desgraça, inveja, morte, vingança e redenção, sentimentos que amalgamam-se num único homem, um herói inconformado com o que fizeram dele e dos seus, que luta primeiro contra seu próprio tormento, e agarra a grande oportunidade com que o destino, de um jeito torto — como sói acontecer —, o regala a fim de ajustar contas com um algoz que encarna tudo quanto alguém pode ter de mais vil.
No ano 180 da era cristã, o Império Romano estendia-se dos desertos da África às fronteiras do norte da Inglaterra (ou seja, todo o mundo que se poderia conhecer), mais de um quarto da população desse planeta arcaico, acerca do qual sabe-se muito menos do que se pensa, vivia e morria sob as leis draconianas e tirânicas dos césares, imperadores que se sucediam no comando da sorte dos homens, mas sem nenhum apreço por eles, com as bênçãos do Senado, que na prática era só um simulacro de representação popular. Ao cabo de doze anos, a campanha de Marco Aurélio (121-180) contra as tribos bárbaras da Germânia tem um desfecho, malgrado reste uma fortaleza — um dos grandes erros do monarca, como se sabe. Pela introdução cheia de poesia, reaproveitada no encerramento, é impossível se dizer que o homem tocando os campos na luz difusa da fotografia de John Mathieson é o guerreiro implacável, porém justo, que vai tomar conta dos mais de 150 minutos de uma trama que, como todo clássico, não envelhece e ainda tem o condão de sempre apontar pontos de vista inauditos a cada nova apreciação.
O roteiro de David Franzoni, John Logan e William Nicholson funda-se na vendeta meticulosa de Maximus Decimus Meridius, um general destituído de sua alta patente e de sua própria dignidade após a traição de Cômodo, o filho ardiloso do imperador Marco Aurélio. No primeiro segmento de “Gladiador”, Russell Crowe e Richard Harris (1930-2002) protagonizam bons momentos nesse núcleo aparentemente unidimensional, chapado, mas de que Scott lança mão para alicerçar as homéricas reviravoltas do enredo, a começar pela morte do personagem de soberano, que notamos estar à ronda e sabemos de que modo abjeto toma forma, mas assim mesmo custa-se a acreditar. Quando ela vem, afinal, e carrega um velho literalmente cansado de guerra, que gozou de apenas quatro anos de paz em duas décadas de reinado, abrem-se os panos de uma tragédia cruenta, fundada na morte de indivíduos para os quais ninguém jamais olhou, nem os poderosos nem a gente pobre ela mesma. Roma até poderia ser a luz das civilizações, porém Maximus teria de dar o sangue frente a um inimigo que tinha por um seu irmão.
Ninguém pode ser leviano a ponto de menosprezar a performance de Crowe, e eu tampouco. Quiçá no papel de sua vida, o Gladiador mesmeriza em imagens de dureza calculada e expressões que as emulam nos muitos primeiríssimos planos empregados pelo diretor, valorizados pelo corte preciso de Pietro Scalia. Mas o desempenho do mocinho, só comparável, talvez, ao de Charlton Heston em “Ben-Hur” (1959), de William Wyler (1902-1981), — e que lhe valeu o Oscar de Melhor Ator — só se acende de fato com o providencial socorro de Joaquin Phoenix e sua atuação sempre stanislavskianamente arrojada. Para muito além do óbvio das memoráveis cenas em que Maximus, um semideus escravizado como o herói de Heston, é obrigado a entreter as massas se desviando da lâmina dos adversários e das tigres que brotavam do picadeiro, os confrontos ético-morais entre o ex-general e Cômodo, a negação encarnada do virtuoso e do louvável, são a grande surpresa do longa, bem como a forma como Scott tenta “justificar” a canalhice de seu antagonista, em especial quando leva à cena pílulas do relacionamento incestuoso que mantinha com a irmã Lucila, de Connie Nielsen, a única capaz de despertar-lhe um laivo qualquer de humanidade. “Gladiador” termina reconfigurando o happy end, agridoce, mas com um dado cabotinismo de ter assegurado um lugar alto no panteão do cinema. Mérito de Crowe e Phoenix.
Filme: Gladiador
Direção: Ridley Scott
Ano: 2000
Gêneros: Drama/Aventura/Ação
Nota: 10/10