Último dia para assistir: inspirado na história de Malala Yousafzai, filme na Netflix vai te chocar e emocionar  

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“O Diário do Pescador” parece o registro de outro mundo — e talvez seja mesmo. É difícil, é torturante acreditar que a civilização não tenha chegado a todas as terras do globo em pleno século 21; pior ainda é ter de admitir que essa é uma realidade que demanda esforços de toda a comunidade internacional para experimentar alguma mudança, mas que para ser mesmo efetivada tem de vir de dentro para fora.

Há alguma margem para esperança no filme de Enah Johnscott, contudo. O diretor de 39 anos abre a trama registrando o dia a dia dos habitantes do povoado de Menchum, um departamento do noroeste de Camarões, país no oeste da África Central. Na sequência, Johnscott detém a câmera sobre dois de seus patrícios, Diana Ekah e Solomon, e apesar do personagem de Kang Quintus ser o tal pescador do título, a protagonista da história é Ekah. Abandonado pela mulher, Solomon cria sozinho a filha Ekah que, aos 12 anos, é a responsável pelo serviço doméstico na casa humilde em que moram e por limpar os peixes que o pai traz do mar e vendê-los às moradoras do vilarejo.

Tem-se uma noção límpida do que “O Diário do Pescador” reserva ao público logo no início. Ekah, vivida na longa primeira fase da trama por uma atriz mirim anônima (e essa é uma ironia involuntária da produção), deixa patente sua insatisfação com a vidinha que tem levado. Entre as freguesas do pai está Bihbih, a professora interpretada por Ndamo Damarise, que faz o que pode na única escola do lugar. Mesmo sabendo dos parcos recursos do grupo, da paciência escassa de Bihbih — que também não tem lá tanta instrução acadêmica — e do quão difícil seria convencer o pai a deixá-la frequentar as aulas, Ekah sonha com a oportunidade de uma vida melhor, como talvez como tenha sido a da mãe. Aliada ao obscurantismo, à ojeriza à cultura e à educação e, claro, ao machismo da sociedade atrasada de Menchum, vem a mágoa de Solomon: ao permitir que a mulher estudasse, o pescador acabou por perdê-la. No fundo, a luta da garota é contra um pai mortalmente amargurado, tomado por preconceitos, que arrasta a filha para um futuro de incerteza e abjeção por um capricho viril, só em parte aplacado porque a ex-companheira voltara, doente, para morrer. Desprezada pelo marido até o fim.

Johnscott se vale de seu roteiro a fim de fazer as gastas (mas inacreditavelmente atuais) denúncias sobre casamento infantil, estupro de vulneráveis e trabalho análogo ao escravo, presentes ainda neste século 21 em que vivemos, sobretudo nas comunidades mais remotas — e ignoradas — do mundo. Aos doze anos, Ekah é muito mais sábia que o pai, porque certa de que todo o conhecimento atávico que possa emanar de sua terra jamais vai suprir a erudição que só adquire pelos livros. Com subtramas um tanto aguadas, que não acrescentam ao resultado final, a história toma um rumo com a entrada em cena de Lucas, irmão de Solomon; acossado por Sule, de Neba Godwill Awantu, a quem deve setenta mil francos central-africanos, mas só paga quatro mil, o tio paterno da personagem principal torna-se o grande vilão de “O Diário do Pescador”, arrancando-lhe o último fio de inocência e atirando-a numa espiral de desespero que por pouco não cessa da pior maneira possível. A indignação de Ekah diante de tamanho descaso com seu destino por quem deveria zelar por ela, a barbárie em estado bruto, é também a revolta do espectador; mesmo que a sorte da protagonista fosse um jogo de cartas marcadas desde o princípio, é custoso acreditar que sua vida degringole dessa maneira, momento da narrativa em que vêm à tela as sequências mais perversas do filme.

A equipe de divulgação de “O Diário do Pescador” usa a figura da ativista paquistanesa Malala Youfsazai — vítima de um atentado que quase a matou, em 2012, motivado pela mera vontade da garota em ir à escola, o que lhe era vedado pelo Talibã só por ser mulher —, mas não precisava: as mulheres continuam a ser vilipendiadas, sob os pretextos mais abjetos, ao redor de todo o mundo. Valendo-se de um argumento banal, o longa acerta em cheio ao insistir num tema que grande parte dos sabidos tacha imediatamente de ultrapassado, sem conhecer nem mesmo na superfície as dificuldades de se ser mulher, ainda hoje, e não somente na África. Malgrado faça péssimo uso de elementos técnicos — principalmente da trilha sonora —, Enah Johnscott reveste seu trabalho de um lirismo inesperado ao retratar a orla imunda de Menchum ou o sol despontando ao longe. Isso sem fazer referência às atuações, a começar pela intérprete da Ekah aos doze anos, e chegando à versão adulta da personagem, no momento mais alto de sua jornada e do próprio filme, quando Faith Fadel ilumina o quadro com seu belo sorriso e deixa a mensagem de esperança sobre a qual “O Diário do Pescador” se ancora. Em tempos em que a ignorância mata, repetir o óbvio, ainda que se corra o risco de aborrecer, é mais que desculpável. É terapêutico.

Ao narrar uma epopeia com uma das muitas demandas de uma das gentes mais antigas da Terra, “O Diário do Pescador” traz alento ao público, suscitando a esperança de que iniciativas semelhantes tomem corpo, mormente as saídas da África, que vem sendo finalmente apresentada ao mundo em produções estrangeiras como “Beasts of No Nation” (2015), de Cary Fukunaga, mas sendo ainda poucos os casos como o do filme de Enah Johnscott, sobre a África e da África, o que também se vê em “Amina” (2021), do nigeriano Izu Ojukwu. Está na hora do continente africano contar sua história por si só. Com finais felizes, só para variar.


Filme: O Diário do Pescador
Direção: Enah Johnscott,
Ano: 2020
Gêneros: Drama
Nota: 9/10