O filme escondido na Netflix que você não vai querer que termine Divulgação / Enlight Pictures

O filme escondido na Netflix que você não vai querer que termine

A loucura pode tomar forma sob os aspectos mais inauditos, revelando assim as faces que restam ocultas de pessoas que passariam por exasperantemente comuns, mas só em determinadas circunstâncias. “Animal World” dedica-se a escancarar esse lado da natureza de toda criatura, dotado de luzes e sombras, tão cheio de arestas e de reentrâncias, de escarpas e precipícios, que nós mesmos raramente nos aventuramos a ir até lá, ou por temor dos monstros horríveis que hão de nos receber — e em todos eles se destaca algum traço de nossa fisionomia —, ou pela crença tola de que jamais teremos a mais pálida necessidade de nos abalar do alto de nossas certezas para o porão mofado de velhos erros que o espírito tenta ocultar. O filme de Han Yan vence as barreiras com que conseguimos nos manter a salvo da curiosidade quase sempre nefasta de quem nos rodeia, mas esperando que num momento qualquer engulam-nos as situações em que o cerco se fecha, de um modo tão pronunciado que chegamos a supor que a força do pensamento nos transportou para uma espécie de universo paralelo, terra mágica e perigosa governada por um soberano perverso, a quem temos de prestar contas de todas as emoções, mormente das mais tacanhas; de todos os planos, em especial dos mais vis; de todas as vontades, inclusive das nunca tornadas concretas.

Adaptado do mangá de Nobuyuki Fukumoto, o roteiro de Yan dá sequência à boa recepção de “Kaiji: The Ultimate Gambler” (2009), de Toya Sato, e as derradeiras cenas apontam para uma continuação. Por evidente, a analogia mais imediata é com “Jogos Vorazes”, mas “Animal World” tem suas idiossincrasias. Se na franquia dirigida por Gary Ross e Francis Lawrence os contendores partiam para cima uns dos outros sem pena, da maneira mais brutal, aqui o diretor mostra seus personagens disputando partidas de pedra-papel-tesoura, e isso definitivamente não significa que o filme de Yan pegue leve de preferência a elaborações dramáticas mais sofisticadas em detrimento da violência. O que se observa nos 130 minutos de projeção é o uso indiscriminado da fotografia cheia de cores de Max Da-Yung Wang, sempre vários tons acima do natural, ora para amenizar, ora para fazer ainda mais intensos os confrontos entre Zheng Kaisi e o batalhão de inimigos que junta ao redor de si.

No prólogo, o antimocinho de Li Yifeng surge caracterizado como um palhaço triste num fliperama adornado de luzes particularmente brilhantes, e a partir de então Yan vai desdobrando o argumento que permeia todo o filme, ligado a um superpoder tão esdrúxulo como catártico. Decerto são exotismo dessa marca uma das razões para a aclamação do longa no Festival Internacional de Cinema de Xangai, e no fim do primeiro ato, quando do anúncio da desdita inescapável do protagonista, a entrada em cena de Michael Douglas como Anderson, estereótipo do homem de negócios sem escrúpulos e muito tato para multiplicar dinheiro, “Animal World” começa a entregar alguns de seus incontáveis segredos a bordo de Destiny, um transatlântico sem lugar para perdedores.

Detalhezinhos mínimos, quase imperceptíveis, a exemplo das inscrições tatuadas no pescoço dos guerreiros, referência a um dos expedientes usados por Hitler para subjugar e mesmo desumanizar os judeus ao longo de seus doze anos à frente da Alemanha nazista, além da trilha de Michael Tuller e Neal Acree, com acordes de “La Vie en Rose” (1947), sucesso na interpretação rasgada de Edith Piaf (1915-1963), dão um verniz de requinte histórico e artístico a um enredo entre fácil e banal — mas divertido —, com o pior e o melhor da condição humana.


Filme: Animal World
Direção: Han Yan
Ano: 2018
Gêneros: Drama/Thriller
Nota: 8/10