A história mais surpreendente do cinema brasileiro está na Netflix e você não assistiu Divulgação / California Filme

A história mais surpreendente do cinema brasileiro está na Netflix e você não assistiu

Se é possível definir em único conceito o que vem a ser brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) foi quem melhor se saiu na empreitada. Em 1936, o sociólogo e historiador publicou o livro que presta-se a uma das sínteses de nossa necessidade de pertencer, de agregar, de manifestar opiniões sobre tudo e sobre todos em qualquer ocasião, o que, por óbvio, não é exatamente uma qualidade. Com “Raízes do Brasil”, Holanda enxergou essa carência tão nossa quanto a ter sempre na ponta da língua uma resposta, amigável ou desaforada, para tudo, atropelando a razão sem nenhuma cerimônia e justificando o excesso de confiança, de intimidade, de indiscrição aludindo ao calor destes tristes trópicos, tão propício às emoções e inimigo do pensamento sofisticado e do decoro. O homem cordial de “Raízes do Brasil” é um conceito que foi sendo encoberto pelo tempo, e não por acaso em “O Animal Cordial” Gabriela Amaral Almeida não só resgata essa ideia como trata de expandi-la ainda um pouco, alertando para um certo comportamento selvagem que nasce do ressentimento de indivíduos que passam a vida oprimidos, a receber ordens, a mascarar seus verdadeiros sentimentos, sua real natureza.

No que toca ao cinema em senso estrito, Almeida também escolhe excelentes referências para fundear seu trabalho. Possivelmente não há nada mais incômodo, mais exasperador, mais abjeto que colocar no mesmo campo semântico comida e crime, e boa parte da conjuntura de horror de “O Animal Cordial” se desenrola puxada pela presença das refeições servidas num restaurante decadente num bairro classe média de São Paulo. Da mesma forma que em “Festim Diabólico” (1948), a diretora-roteirista oferece ao público um banquete de tensão, exatamente como Hitchcock, concentrando-se nas inúmeras situações em que o sexo torna-se o fio que conduz a narrativa nos lances que mais importam. Muito antes disso, ainda na introdução, os funcionários do restaurante surgem em cena quase como espectros reclamando do salário e da jornada, sempre estendida para além do combinado, na constante penumbra que jamais se dissipa. A fotografia de Barbara Alvarez é, sem dúvida, um dos maiores acertos da técnica, bem como a edição cirúrgica de Idê Lacreta; é essa aura genuinamente fantasmagórica de que Almeida não abre mão para falar dos desencontros entre seus personagens, todos tipos malditos em maior ou menor grau que têm as vidas transformadas para sempre pela ação de um homem monstruoso.

O estabelecimento de Inácio guarda pouco do glamour de antanho. Parece um dos daqueles negócios de família levados à custa de algum sacrifício, mais por honra e tradição que por necessidade, malgrado se tenha evidente que ele, definitivamente, não é nenhum milionário. O personagem de Murilo Benício é decerto o único que se diverte aqui, até porque o que passa no salão vazio não tem nada de venturoso. Amadeu, de Ernani Moraes, pode ser um policial aposentado que se senta numa mesa de canto numa hora pouco civilizada e pede coelho, que nunca havia comido. Da cozinha, o chefe Djair, vivido com contida dramaticidade por Irandhir Santos, encarrega-se do prato meio incrédulo, talvez desconfiado, porque “é pouca carne para muito homem”. No espaço de um instante, chegam também Bruno e Verônica, o casal em brasa muito mais interessado em encontrar um lugar seguro para dar uns amassos do que com o ponto do filé de javali oferecido por Sara, a faz-tudo a que Luciana Paes dá vida. A experiência dos personagens de Jiddu Pinheiro e Camila Morgado é coroada com o assalto perpetrado por Magno e Nuno, os pivetes interpretados por Humberto Carrão e Ariclenes Barroso.

Numa das maiores concentrações de boas performances por metro quadrado do cinema nacional, a diretora abusa dos primeiríssimos planos que tatuam na retina de quem assiste os rostos crispados de uma gente apavorada, cada qual por seus motivos, sobretudo Sara, equilibrando-se numa corda bamba entre fazer a coisa certa ou entregar-se à paixão pelo chefe. Dona de uma carantonha de meter medo e um corpo para quatrocentos talheres — muito bem aproveitado em cenas de sexo regadas a sangue e moral elástica —, Paes daria conta do filme sozinha, mas é um alento verificar que todo elenco segue até o fim azeitado como a cozinha de uma casa recomendada pelo Guia Michelin. Dois ótimos plot twists, um centrado na figura andrógina de Djair, e outro, claro, encabeçado por Sara, já no encerramento — semelhante à solução encontrada para proporcionar a merecida vingança do personagem de João Miguel em “Estômago” (2007), de Marcos Jorge — dão o tempero que garante que o “O Animal Cordial” preserve a fúria que o toma na virada do primeiro para o segundo segmento e comprove a tese de Sérgio Buarque de Holanda. Sem o glacê do academicismo.


Filme: O Animal Cordial
Direção: Gabriela Amaral Almeida
Ano: 2017
Gêneros: Terror/Suspense
Nota: 9/10