O melhor, mais belo e melancólico filme de 2023 chegou à Netflix e vai te emocionar Divulgação / Netflix

O melhor, mais belo e melancólico filme de 2023 chegou à Netflix e vai te emocionar

“Meu Nome é Chihiro” dá a impressão de ser uma espécie de tributo à heroína de Hayao Miyazaki, e, de certo modo, a inferência procede. Assim como a personagem-título de “A Viagem de Chihiro” (2001), Oscar de Melhor Filme de Animação, a protagonista do longa de Rikiya Imaizumi também é dona de seu próprio nariz e corajosa um tanto além da medida e demonstra preferir manter-se em constante deslocamento a se relegar à condição de mera espectadora da vida, sua e dos outros, contemplando tudo em perturbador silêncio até que não suporte mais e exploda em ódio e autodestruição. Apesar de todos esses pontos de contato, existem diferenças que distinguem-nas e, claro, é uma saborosa provocação que Imaizumi faça de sua Chihiro uma ex-prostituta sem conta alguma a acertar com o passado, satisfeita com o que viveu, hábil em contornar seus tempos mortos e desembarcar sem traumas numa existência nova, renovada, dispondo da tolerância de quem a rodeia — malgrado, naturalmente, as dificuldades de praxe imponham-se com maior ou menor força.

Como se assiste a certa altura, o roteiro de Imaizumi e Kaori Sawai, adaptado do mangá de Hiroyuki Yasuda, há uma pequena discrepância quanto ao verdadeiro nome da mocinha, um trabalho soberbo de Kasumi Arimura — o que não vem a ser surpresa alguma se o espectador tem por parâmetro a vida que ela levava antes. Ainda que continue a ser chamada pelo nome de guerra, Chihiro não ganha mais a vida na casa de massagem de Utsumi, o cafetão a quem considera como um pai vivido por Lily Franky. Agora, ela passeia pelo bairro pacato onde mora, conversa com Dona Madame, a gata de rua solitária e amável, sua alma gêmea felina, e quando expira seu tempo livre, volta para o batente como faz-tudo no restaurante de bentôs de Tae, a patroa generosa interpretada por Jun Fubuki. O andamento estritamente retilíneo de “Meu Nome é Chihiro” pode agastar quem procura pelos sobressaltos narrativos tão próprios às histórias em quadrinhos nipônicas como “A Viagem de Chihiro” — e somado ao texto flagrantemente onírico de Miyazaki, de tal forma persuasivo em exortar o público a sonhar que depois de alguns minutos ninguém mais quer voltar ao plano físico, é esse justamente um dos encantos que fazem o desenho ser um dos melhores filmes de todos os tempos, a despeito do gênero. Efetivamente, o trabalho de Imaizumi é o registro de uma mulher comum à cata de seu lugar no mundo, e fazer com que histórias comuns, de gente comum, arranquem a máscara da pretensa superficialidade e mostrem que são, em verdade, excepcionais não é nada fácil. Esse é o pulo do gato que o diretor empreende com galhardia.

Diz a voz rouca das ruas, com acerto, como quase sempre, que depois de viver por muito tempo sob determinada condição, pode-se sair daquele estado, mas sempre há de restar na alma um farelo que nos remete de pronto àquela vida de outrora. Não, Chihiro não fica nas esquinas à noite, oferecendo seus antigos serviços agora apenas por diversão, feito aquela grande vilã do tempo em que as telenovelas ainda tinham algo de fresco. Sua natureza de ex-gueixa do século 21, sem nada do glamour das concubinas dos imperadores e dos mandachuvas do comércio de especiarias, se manifesta em sua necessidade de agradar. A amizade com Mestre, o sem-teto apresentado por Keiichi Suzuki numa performance chapliniana tão muda quanto comovente; a amizade com Basil, a ex-colega de viração, de Yui Sakuma; a amizade com Keisuke, a pobre menina rica de Hana Toyoshima… Amizade é uma palavra que esconde minudências perturbadoras do espírito atormentado de Chihiro. É como se essa garota cheia de méritos tivesse de ter um milhão de amigos para sentir-se viva, como se precisasse de licença para ser quem de fato é, de licença para respirar, para viver. Arimura dá dimensão palpável a essa culpa incorpórea e invencível de sua personagem, conduzindo-a ao autodiagnóstico de que qualquer felicidade, por efêmera que seja, deve ser logo refutada. É o que se vê no desfecho, sem tragédias ou grandes rupturas, momento em que esse anel de vidro da cantiga das crianças quebra-se outra vez e resta claro que ela nunca há de se perdoar, por mais serena que pareça.

A melancolia doce desses filmes, orientais em grande parte, é didática em seu pragmatismo. Nunca se sabe se moças como Chihiro são santas ou diabas — meretrizes nunca mais —, só que precisam de constante orientação. Todos temos o direito de errar, o dever de reconhecer o erro e a escolha de começar de novo. E Chihiro, no fundo, o sabe muito bem.


Filme: Meu Nome é Chihiro
Direção: Rikiya Imaizumi
Ano: 2023
Gênero: Drama
Nota: 10