Brutal até o osso, novo filme da Netflix vai fazer seu coração sair pela boca Chris Harris / Netflix

Brutal até o osso, novo filme da Netflix vai fazer seu coração sair pela boca

Diretores como Jordan Peele têm se notabilizado pelo que alguns críticos denominam, de maneira bastante infeliz, de terror negro. Não se trata de nenhum pleonasmo ou trocadilho com a expressão humor negro, que define situações cômicas em contextos sinistros ou desabridamente macabros, mas de enredos em que o suspense elevado a potências quase intoleráveis, transmuda-se no horror de cenas incômodas, abjetas, repulsivas, justamente porque cutucam fundo demais a chaga aberta do racialismo, que parece não querer fechar tão logo. Na direção de seu primeiro longa, Nathaniel Martello-White apresenta muitos pontos de contato com filmes como “Nós” (2019) ou “Não! Não Olhe!” (2022), mas não arremeda Peele e imprime seu próprio estilo de enxergar uma das maiores preocupações da humanidade nos nossos dias: afastar o cinismo que pontua as discussões sobre justiça social, intolerância e meritocracia voltadas ao contexto da harmonia — e, mais importante, da segregação — das ditas raças, assuntos cada vez mais basilares neste século 21.

Num texto cheio de reviravoltas sutis — e absorventes —, o diretor-roteirista abre “Excluídos” com o plano aberto de uma plantação vista do alto. A falsa pista de que Martello-White se vale para capturar o interesse do público, graças à impecável fotografia de Adam Scarth, presta-se também a apresentar o cenário de onde vem a protagonista, de quem o espectador começa a desconfiar logo. Ashley Madekwe está sentada no sofá de casa, desleixada, malvestida, falando com alguém que parece sua mãe sobre problemas de dinheiro e o tom não parece amistoso. Isso é tudo o que se pode saber de um lance tão tenso quanto rápido, e na intenção de melhor orientar quem assiste, o filme é dividido em tomos em que os personagens são apresentados em caracteres góticos em vermelho sobre uma tela negra — recurso que além de desnecessário e batido (o próprio Peele se socorre dele em “Nós”), surge em horas pouco convenientes —; essa primeira aparição de Madekwe se dá sob o nome de Cheryl Blake, mas no quadro seguinte Cheryl, como se vai ver, torna-se outra pessoa.

Antes de transformar-se em Neve Williams, a respeitável diretora-assistente de uma escola de ensino médio numa cidadezinha do interior do Reino Unido, Cheryl mencionara os dois nomes que tomam corpo na história na virada do primeiro para o segundo ato. Enquanto isso, Neve desfruta da casa perfeita, da família perfeita, da vida perfeita que passou a ter. Sebastian, interpretado por Samuel Small, e Mary, de Maria Almeida, os filhos que teve com Ian, o marido doce e compreensivo encarnado por Justin Salinger, são adolescentes comuns, e ainda melhor, nasceram com a pele clara, quase como a de Ian, um alívio para alguém com sua visão de mundo, tacanha e vazia. Progressivamente, miudezas óbvias, mas muito bem escondidas pela argúcia narrativa de Martello-White, assim como pelo andamento demasiado célere de 97 minutos, sobem das profundezas do discurso do filme. A mais flagrante delas é, sem dúvida, a peruca que Neve usa esconder os cabelos crespos, por mais que Ian diga que os prefere ao natural. Neve é negra, e esse o momento em que as luzes de “Excluídos” voltam-se para os personagens que justificam o título.

Mesmo que tenha se tornado uma mulher da sociedade e esteja a um passo de tomar o cargo de Kenneth, papel de Michael Warburton — não se chega sequer a especular como ela teria conseguido passar de vendedora num mau momento profissional a mandachuva de um colégio de elite —, Neve não consegue apagar Cheryl de sua história, nem mesmo com os jantares beneficentes regados a lagostim que promove em sua mansão. Esse evento é, aliás, onde seu caminho volta a se cruzar com o de Marvin e Abigail, os personagens de Jorden Myrie e Bukky Bakray, soberbos.

Em “Excluídos”, a placidez do subúrbio londrino serve muito bem de cenário de uma história do terror mais asqueroso, em que Martello-White desmonta farsas embaladas em discursos bonitos e ocos. A quimera da igualdade, o birracialismo de Neve, o racismo contra si mesma, os filhos mestiços são só mais uma gota no oceano lamentavelmente inesgotável de estupidez e hipocrisia que Rebecca Hall já havia mencionado em “Identidade” (2021). Filmes como esses são, infelizmente, atuais e necessários. O desconforto com a própria natureza é uma coceira para além da pele.


Filme: Excluídos
Direção: Nathaniel Martello-White
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10