Diretores como Jordan Peele têm se notabilizado pelo que alguns críticos denominam, de maneira bastante infeliz, de terror negro. Não se trata de nenhum pleonasmo ou trocadilho com a expressão humor negro, que define situações cômicas em contextos sinistros ou desabridamente macabros, mas de enredos em que o suspense elevado a potências quase intoleráveis, transmuda-se no horror de cenas incômodas, abjetas, repulsivas, justamente porque cutucam fundo demais a chaga aberta do racialismo, que parece não querer fechar tão logo. Na direção de seu primeiro longa, Nathaniel Martello-White apresenta muitos pontos de contato com filmes como “Nós” (2019) ou “Não! Não Olhe!” (2022), mas não arremeda Peele e imprime seu próprio estilo de enxergar uma das maiores preocupações da humanidade nos nossos dias: afastar o cinismo que pontua as discussões sobre justiça social, intolerância e meritocracia voltadas ao contexto da harmonia — e, mais importante, da segregação — das ditas raças, assuntos cada vez mais basilares neste século 21.
Num texto cheio de reviravoltas sutis — e absorventes —, o diretor-roteirista abre “Excluídos” com o plano aberto de uma plantação vista do alto. A falsa pista de que Martello-White se vale para capturar o interesse do público, graças à impecável fotografia de Adam Scarth, presta-se também a apresentar o cenário de onde vem a protagonista, de quem o espectador começa a desconfiar logo. Ashley Madekwe está sentada no sofá de casa, desleixada, malvestida, falando com alguém que parece sua mãe sobre problemas de dinheiro e o tom não parece amistoso. Isso é tudo o que se pode saber de um lance tão tenso quanto rápido, e na intenção de melhor orientar quem assiste, o filme é dividido em tomos em que os personagens são apresentados em caracteres góticos em vermelho sobre uma tela negra — recurso que além de desnecessário e batido (o próprio Peele se socorre dele em “Nós”), surge em horas pouco convenientes —; essa primeira aparição de Madekwe se dá sob o nome de Cheryl Blake, mas no quadro seguinte Cheryl, como se vai ver, torna-se outra pessoa.
Antes de transformar-se em Neve Williams, a respeitável diretora-assistente de uma escola de ensino médio numa cidadezinha do interior do Reino Unido, Cheryl mencionara os dois nomes que tomam corpo na história na virada do primeiro para o segundo ato. Enquanto isso, Neve desfruta da casa perfeita, da família perfeita, da vida perfeita que passou a ter. Sebastian, interpretado por Samuel Small, e Mary, de Maria Almeida, os filhos que teve com Ian, o marido doce e compreensivo encarnado por Justin Salinger, são adolescentes comuns, e ainda melhor, nasceram com a pele clara, quase como a de Ian, um alívio para alguém com sua visão de mundo, tacanha e vazia. Progressivamente, miudezas óbvias, mas muito bem escondidas pela argúcia narrativa de Martello-White, assim como pelo andamento demasiado célere de 97 minutos, sobem das profundezas do discurso do filme. A mais flagrante delas é, sem dúvida, a peruca que Neve usa esconder os cabelos crespos, por mais que Ian diga que os prefere ao natural. Neve é negra, e esse o momento em que as luzes de “Excluídos” voltam-se para os personagens que justificam o título.
Mesmo que tenha se tornado uma mulher da sociedade e esteja a um passo de tomar o cargo de Kenneth, papel de Michael Warburton — não se chega sequer a especular como ela teria conseguido passar de vendedora num mau momento profissional a mandachuva de um colégio de elite —, Neve não consegue apagar Cheryl de sua história, nem mesmo com os jantares beneficentes regados a lagostim que promove em sua mansão. Esse evento é, aliás, onde seu caminho volta a se cruzar com o de Marvin e Abigail, os personagens de Jorden Myrie e Bukky Bakray, soberbos.
Em “Excluídos”, a placidez do subúrbio londrino serve muito bem de cenário de uma história do terror mais asqueroso, em que Martello-White desmonta farsas embaladas em discursos bonitos e ocos. A quimera da igualdade, o birracialismo de Neve, o racismo contra si mesma, os filhos mestiços são só mais uma gota no oceano lamentavelmente inesgotável de estupidez e hipocrisia que Rebecca Hall já havia mencionado em “Identidade” (2021). Filmes como esses são, infelizmente, atuais e necessários. O desconforto com a própria natureza é uma coceira para além da pele.
Filme: Excluídos
Direção: Nathaniel Martello-White
Ano: 2023
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10