Um dos filmes mais aterrorizantes e comoventes da história do cinema está na Netflix Divulgação / Netflix

Um dos filmes mais aterrorizantes e comoventes da história do cinema está na Netflix

“Pandora” faz justiça ao nome. Como se destapasse uma caixa em que se reunissem boa parte dos males da vida, o diretor Park Jung-woo se sai bem ao promover um escrutínio nada professoral, inventivo e tecnicamente impecável de episódios que, queira-se ou não, entram para a memória coletiva de todo um povo, e não por três ou quatro dias. Asiáticos, sobretudo sul-coreanos, são pródigos em esventrar organizações apodrecidas, em especial quando expõem más condutas arraigadas no governo e nas corporações. Escândalos como os que perderam Park Geun-hye, a presidente cassada em 10 de março de 2017 e condenada a 24 anos de cadeia por abuso de poder, suborno e coerção em 6 de abril de 2018, só não são mais impactantes que os eventos de uma natureza furiosa, sempre a postos quando se trata de assolar a península da Coréia, no nordeste do continente, com furacões, maremotos e tremores de terra. Em 12 de setembro de 2016, um terremoto de magnitude 5.3 na escala Richter passou por Gyeongju, no sudeste do país, e mesmo que, felizmente, não tenha feito mortes nem causado abalos nas estruturas de pontes e edifícios — graças aos maciços investimentos em tecnologia e capital intelectual desde 1950, quando da eclosão de uma sequência de conflitos armados ao longo dos quais os exércitos do Norte invadiram a porção meridional, o que degringolou numa guerra fratricida, mas oficialmente sem vencedor ou vencido, que dividiu a península em duas nações independentes três anos depois — serviu de alerta e, claro, assustou muita gente.

Em franca ascensão, Park, junto com Yeon Sang-ho, é um dos maiores nomes do cinema sul-coreano recente. “Pandora” é, a propósito, muito comparado ao “Invasão Zumbi” (2016) de Yeon, e não sem motivo. Embora tenha seus próprios méritos, uma mancheia deles, a ação pontuada por momentos de terror crescente a partir da segunda metade do segundo ato lembra o andamento do filme do ano anterior, não obstante com o sinal trocado: em “Invasão Zumbi”, Yeon tempera o terror com lances inesperados, e num átimo a calmaria cede lugar à tormenta que põe atores correndo de mortos-vivos e sendo arremessados para fora do trem que os conduz, mencionado no título em inglês, compondo as ricas metáforas e hipérboles que já viraram a peça de resistência das produções desse gênero lançadas na Ásia, Coreia do Sul à frente, bem como a nostalgia. O diretor-roteirista emprega a fotografia em sépia de Choi Young-hwan numa sequência que remete ao passado de Jay-hyeok, o engenheiro mecânico vivido por Kim Nam-gil. Prestes a completar quarenta anos, Jay-hyeok continua se sujeitando a chefes incompetentes e desumanos na fictícia usina nuclear de Hanbyul, onde já morreram seu pai e seu irmão, ainda mora com a mãe, papel de Kim Young-ae, responsável por muitos dos lances cômicos do texto de Yeon, a cunhada Jung-hye, interpretado por Moon Jeong-hee e o sobrinho Min-jae, de Bae Gang-yoo. Visivelmente frustrado, Jay-hyeok lembra-se das conversas em que discutia com os outros meninos, do alto de seus dez anos, sobre a origem e a importância da energia gerada pelas instalações de Hanbyul, uma gigantesca panela de pressão que, por evidente, sempre pode explodir, e sem prévio aviso. Se algum dia o protagonista demonstrou algum entusiasmo frente à possibilidade de vir a se tornar um dos quadros mais brilhantes da usina, hoje tudo pelo que Jay-hyeok mais anseia é ir embora, mas como já não é nenhum garoto e sabe que pode fracassar miseravelmente — e, por conseguinte, voltar como o filho pródigo não seria uma opção, mas, sim, continuar vagando pelo mundo à cata de um lugar para chamar de seu —, fica e ouve os desaforos da mãe, que calam mais e mais fundo. Esse primeiro segmento, uma crônica familiar saborosa e comovente, à “Minari: Em Busca da Felicidade” (2020), levado à tela por Isaac Chung, antecede a narrativa destacadamente acelerada de um vazamento radiativo, que por seu turno dá azo à evacuação atabalhoada dos moradores — não no litoral paulista, mas na Coreia do Sul. Cabe a Jay-hyeok, um homem comum, candidatar-se ao posto de herói e tentar levar a cabo uma operação suicida no intuito de consertar o reator que mantém a pressão a níveis estratosféricos.

Park encerra seu filme recheando-o de comentários político-ideológicos que cairiam melhor se dispersos no transcurso dos 136 minutos de projeção de “Pandora”. Contudo, esse pequeno deslize não empana os trechos de emoção e caos quando do desdobramento da ideia que ancora o enredo, muito em função de atuações muito acima da média, a despeito do gênero. “Pandora” une muitos elementos aparentemente desconexos entre si, mas cuja integração qualquer pessoa de bom senso nota — malgrado as catástrofes teimem em suceder umas às outras.


Filme: Pandora
Direção: Park Jung-woo
Ano: 2017
Gêneros: Drama/Suspense
Nota: 9/10