A história de amor intrigante e surpreendente que está escondida na Netflix e você não assistiu Divulgação / Koch Media

A história de amor intrigante e surpreendente que está escondida na Netflix e você não assistiu

A inadequação da natureza humana no mundo, um ambiente que se lhe apresenta mais e mais hostil à medida que se descobre a si próprio, acaba sendo traduzida sob uma miríade de situações, ora incômodas, ora flagrantemente perigosas, que por seu turno desembocam em outras tantas possibilidades cuja amplidão vai de encontro ao plano da limitada racionalidade do homem. O caso de “Órbita 9” é semelhante, ainda que o filme do espanhol Hatem Khraiche elabore um argumento central visto algumas vezes ao longo do mais de século do cinema, condensando nesse movimento erros e acertos já ratificados. Entretanto, como nosso espírito é mesmo invencível em sua sede de vivenciar novas experiências — por menos novas que na verdade sejam —, Khraiche consegue levar com relativa tranquilidade a história de uma jovem mulher vivendo no espaço há 7.409 dias. Não é preciso ter paixão pela ciência de Pitágoras para dar-se conta de que isso é muito tempo, quase 21 anos na ponta do lápis, e então principiam a insinuar-se as perguntas que o diretor responde de pouco em pouco.

Há muitas referências consagradas no roteiro, também de Khraiche, que se vão forjando ao sabor das conveniências, mas da mesma forma seu texto tem o condão de apresentar algumas alternativas ao óbvio e resistir ao clichê. Desabridamente linear, com poucas reviravoltas, a trama se destaca é pelas circunstâncias de anticlímax que se avultando, ainda na introdução, toda centrada na figura da protagonista. Como em “Oxigênio” (2021), de Alexandre Aja, uma personagem feminina divide a cena com um dispositivo cibernético que a vai orientando acerca da contagem do tempo — é a máquina quem a informa sobre o quantos dias já se encontra fora da órbita da Terra, e mais adiante se fica sabendo que ela vai permanecer nessa outra dimensão até os quarenta anos —, do que deve fazer e como e, o mais importante, das condições do oxigênio da nave. Helena, essa mulher exilada na própria vida, parece completamente integrada a esse jeito exótico, até insano, de estar no mundo, no seu próprio mundo. Clara Lago é plácida ao destrinchar as crises de consciência de heroína, e sequência como as que mostram Helena exercitando-se, não para manter a forma, mas para não enlouquecer, prestam-se à necessária quebra da tensão, que só começa a desanuviar de fato com a chegada de Alex, um engenheiro aeroespacial que passa a acompanhá-la. Numa das muitas conversas que tem com seu salvador, a mochileira solitária das galáxias explica que fora mandada ao espaço, mais precisamente à Órbita 9 do título, que tem uma conexão secreta (e absurda) com a superfície terrestre, lembrando muito os desenhos animados de priscas eras, a exemplo de “Caverna do Dragão” (1983-1986) e “Cavalo de Fogo” (1986). Mesmo que não quisesse, Alex, interpretado por Álex González, haveria de aplacar os vinte anos de misantropia forçada da garota, que anseia por ser beijada — mas como ela sabe o que é um beijo? —, e nesse embalo Belén Rueda e Andrés Parra aparecem na pele de Silvia e Hugo, como antagonistas em diferentes tons de sombrio, também conferindo um lastro de credibilidade aos arroubos criativos de Khraiche.

Boa vontade é uma expressão que se deve usar com parcimônia, mormente em se tratando de manifestações artísticas. Entretanto, não há o que se pensar de muito mais delicado a respeito de “Órbita 9” se não recorrer ao surrado chavão do feijão-com-arroz bem-feito, ou boçalidade que tais. Talvez a cadência do filme reste miseravelmente comprometida em rala hora e meia de projeção, quando precisaria de um reforço, ou de mais cortes. Eis um dos trabalhos de Hércules dos diretores de cinema num gênero que, a despeito dos milhares de rotações por minuto do mundo neste inclemente século 21, especialmente nesse gênero.


Filme: Órbita 9
Direção: Hatem Khraiche
Ano: 2017
Gêneros: Ficção científica/Romance
Nota: 7/10