O premiadíssimo e emocionante filme da Netflix que você ainda não assistiu

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Como quase todo mundo, passamos boa parte da vida seguindo os conselhos bem-intencionados de parentes, amigos, namorados, gente muito interessada nosso bem, até que tanto altruísmo começa a cheirar mal. Presos nas vidas que puderam ter — mas a que se acostumaram e, de que, de uma maneira ou de outra, acabaram gostando —, os personagens de “Amigos de Escola”, queriam aproveitar a chegada à meia-idade para se libertar de alguns grilhões a que eles mesmos se acorrentaram. Abusando da metalinguagem, o taiwanês Huang Hsin-yao faz de seu filme a confidência autobiográfica de um homem à cata do tempo perdido, assistindo à flor da vida murchar sem pressa, como convém a um oriental, ao mesmo tempo em que é tomado pela angústia de se saber inepto para qualquer coisa capaz de validar sua existência medíocre, uma vez que a morte não chega e seus fantasmas também seguem tão vivos quanto ele. Huang brinca desaforadamente com suas próprias dores, relembrando o início da carreira, tragédias íntimas, amores malogrados e a participação das pessoas com quem dividiu momentos cruciais ao longo da jornada.

O diretor aniquila as ilusões de quem deseja enveredar pelo ofício do cinema vislumbrando fortuna e glória. No prólogo, deliciosamente autorreferencial, Huang dá a entender que está pilotando uma Scooter meio velha pela rodovia que corta um vilarejo nos arredores da Tainan onde nascera, e deixa claro que sua vida ainda é a mesma de sempre, ainda que goze de mais amplitude, porque agora seu campo visual passou de 13:7 para 7:3. Nesse momento, a imagem, esmaecida pelo preto e branco que denota uma nostalgia agridoce, torna-se colorida e, como ele também enfatiza, sua voz fica mais sensualmente encorpada. A trilha engraçadinha de Ren-chien Ko presta-se a induzir o público ao equívoco quanto à natureza supostamente tola da história, porém Huang logo desfaz essa primeira falsa impressão, malgrado com parcimônia. Aos poucos, o diretor-roteirista vai entrando nas vidas dos quatro companheiros que cruzam seu destino, traçando arcos dramáticos profundos e estabelecendo subtramas dignas dos grandes romances da literatura universal.

A vida, e principalmente, a vida depois que se sabe que o tempo por viver equivale ao resto que ainda pode haver de vida (e talvez seja menor), transformam-se numa neurose que Freud nenhum cura para Bloqueio, Ventilador, Níquel e Latinha — e é impossível não ter um acesso de riso ao deparar-se com marmanjos referindo-se uns aos outros por meio de apelidos tão ridículos, mormente na situação em que se encontram. O medo de envelhecer, da doença, do desemprego, da pobreza severa e, por evidente, da morte toma de assalto os filmes de realizadores orientais de tempos em tempos, com mais violência retórica desde “Um Domingo Maravilhoso” (1947), de Akira Kurosawa (1910-1998), e aqui o caráter melodramático não é fortuito. Produzido por Chung Mong-hong, o gênio por trás de “A Sun” (2019), uma das mais belas poesias audiovisuais sobre o existir e suas trapaças, “Amigos de Escola” foi o ganhador do Prêmio Escolha do Público do Golden Horse Film Festival and Awards, voltado a divulgar o cinema asiático. O filme de Huang Hsin-yao também venceu nas categorias Melhor Ator Coadjuvante, para Lin Na-dou, e Melhor Direção de Arte, prêmio destinado a Shih-hao Chao.

Como em “Os Fabelmans” (2022), Huang repete Spielberg e exalta a natureza salvífica do cinema para meninos meio perdidos, agarrando todas as chances que se lhe insinuam quanto a fugir da banalidade e fazer da vida algo extraordinário. Nada o impede de, dentro de vinte ou trinta anos, voltar a esse mesmo enredo, acrescendo mais alguns bons capítulos, feitos de choros e risos, mortes e o que ainda houver que pulse.


Filme: Amigos de Escola
Direção: Huang Hsin-yao
Ano: 2020
Gêneros: Drama/Comédia
Nota: 8/10