Candidato ao Oscar, filme da Netflix tem 100% de avaliações positivas Divulgação / Sundance Institute

Candidato ao Oscar, filme da Netflix tem 100% de avaliações positivas

O ano de 1619 marca o começo do negócio de importação de negros escravizados nos Estados Unidos, para a então colônia da Virgínia, estabelecendo, para fins acadêmicos e de localização histórica, o marco zero do sistema escravocrata como instituição legal. A escravidão em território americano resistiu por 246 anos, sobrepujando, inclusive, o movimento pela independência, entre 1774 e 1776, quando as tropas emancipatórias lideradas por George Washington (1732-1799) levaram a melhor nos enfrentamentos contra a Inglaterra, sua metrópole desde 1607. Ironicamente, o processo de colonização dos Estados Unidos pela matriz inglesa deu-se justo pela Virgínia, de onde o domínio britânico se espalhou por todo o país com o êxodo maciço de colonos — mormente os puritanos — a partir de 1620. Os Estados Unidos tornaram-se uma nação autônoma em 4 de julho de 1776, livrando-se da subjugação de um reino que, assumidamente, enxergava-lhe tão somente como a providencial fornecedora de recursos naturais para uma ilha de dimensões ridiculamente menores, em que a exígua faixa de solo cultivável era obrigada a sujeitar-se às intempéries de um clima hostil. Outra razão, esta um pouco menos romântica, era desovar no Novo Mundo para além do Atlântico aqueles tipos indesejáveis, que ousavam sonhar e reivindicar liberdade religiosa no feudo mental que a Inglaterra era e é, em muitos outros aspectos, ainda cristalizado pela dinastia Saxe-Coburgo-Gota, rebatizada de Casa de Windsor em 1917 para apagar as lembranças da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

As tropas de George Washington bateram os soldados de Jorge 3° (1738-1820) em 3 de setembro de 1783, quando as duas partes assinaram o Tratado de Paris, no qual o Reino Unido viu obrigado a reconhecer a soberania da agora ex-colônia como uma nação independente. Imune, todavia, à efervescência social de brancos republicanos, que promulgaram a nova Constituição em 1787 — só ratificada ao termo de dois anos pelos então treze estados que compunham a nova Federação e vitaminada pela Carta de Direitos, em 1791, responsável pela redação das dez primeiras emendas —, o sonho da insubordinação mais pacífica e fundamental da alma do homem foi negado aos cativos africanos até 1865, quando a abolição da escravatura foi oficialmente interditada pela Décima Terceira Emenda. Em levando-se em consideração que o contra-ataque dos ex-senhores de escravos e simpatizantes do escravagismo redundou em leis, idealizadas e aprovadas por congressistas democraticamente eleitos, que cercearam os direitos civis de mulheres e homens afro-descendentes, podemos dizer sem exagero que a escravidão nos Estados Unidos durou até 1968, quando se intensificaram as iniciativas de engajamento de cidadãos comuns, a exemplo do reverendo batista Martin Luther King (1929-1968) e do militante radical Malcolm X (1925-1965), extremos opostos de um mesmo exército, capazes de arrastar multidões com sua oratória e seu exemplo.

Esses 349 anos de sufocação da plena cidadania dos negros na América — sem figura de linguagem, para recordar a execução por asfixia de George Floyd (1973-2020), um ex-segurança negro, morto pelo peso de Derek Chauvin, um policial branco — vêm à tona em “O Último Navio Negreiro”, o excelente documentário de Margaret Brown. Mesmo não sendo negra, Brown parece absorver no ar da pequena Mobile, no Alabama onde nasceu, essa atávica sofreguidão de um povo em busca do respeito merecido, o que passa, inexoravelmente, pelo conhecimento da própria história, plataforma de onde se podem vislumbrar a formulação de novas políticas públicas e um novo pensamento.

A história de Clotilda, a embarcação a que a diretora se refere no título de seu filme, passou por uma lenda, etérea e mesmo eivada de um teor fantasioso meio doentio, até 2018, quando saiu do prelo Barracoon: The Story of the Last Black Cargo”, ainda sem edição em português, em que Zora Neale Hurston (1891-1960), escritora e folclorista, transcreve, em 1931, o que ouvia de pretos forros sobre um certo Timothy Meacher, um sujeito meio misterioso que fez fortuna com o comércio de escravos. Meacher construiu o Clotilda em 1856, como última cartada de um negócio que continuava bastante lucrativo, e o usou para o traslado de escravos para a América até 1860. O comércio internacional de escravos havia sido considerado crime desde 1807, mas o traficante só interrompeu suas atividades por causa de um decreto que passou a punir com a morte os renitentes.

Brown emprega imagens de Cudjoe Lewis, o derradeiro sobrevivente de Clotilda, feitas por Hurston em 1928, o que lhe confere o posto de primeira cineasta negra da história. Com o testemunho dos descendentes das 110 vítimas de Meacher, “O Último Navio Negreiro” é um congraçamento de forças no intuito de dizer, na prática, que vidas negras importam. E que valem tanto quaisquer outras.


Filme: O Último Navio Negreiro
Direção: Margaret Brown
Ano: 2022
Gêneros: Documentário
Nota: 9/10