Morricone: gaita, assobios e uivos de coiotes Divulgação / Lucky Red

Morricone: gaita, assobios e uivos de coiotes

Não há quem não se emocione, assistindo a “Cinema Paradiso”, de Giuseppe Tornatore, com a cena dos beijos cortados de filmes antigos; a trilha sonora, evidentemente, é de Ennio Morricone. Tornatore fez filmes bons e outros apenas razoáveis, mas “Cinema Paradiso” bastaria para o colocar no panteão dos aficionados ao cinema. E Morricone foi, com certeza, um dos fenômenos do século 20: compôs mais de 400 trilhas sonoras, dezenas delas, ou mesmo centenas, excepcionais e gravadas em nossa memória coletiva. Agora, Tornatore nos deu o documentário “Ennio, o Maestro”.

Tornatore foi esperto e não inventou muito: ele deixou Ennio conduzir, como se regesse, o documentário. Claro, há os indefectíveis depoimentos de amigos e colegas, mas é o próprio Ennio quem produz um quase monólogo de duas horas e meia e prende os nossos olhos na tela, porque ele é um fenomenal causeur; tímido, mas ainda assim fenomenal. Confesso aqui uma bobagem: gosto de compositores que, contando alguma história qualquer, imitam instrumentos musicais com a própria voz, o que Morricone faz várias vezes no documentário-quase-entrevista. Não fosse por outros motivos, só isso me faria ver e rever o filme. Mais: o documentário mostra também, en passant, a bela história de amor entre Morricone e Maria Travia, sua esposa, com que esteve por 63 anos. E há o comovente relato sobre seu pai: Morricone notou que ele decaíra como trompetista e, por isso, deixou de incluir trompetes em suas composições. Música, amor e devoção filial, quem haverá de resistir?

Em certo momento, Morricone narra que viu Stravinsky regendo, por uma porta entreaberta, a “Sintonia dos Salmos”, e é também por frestas entreabertas pelo compositor italiano que o tom do filme vai subindo, numa espécie de crescendo musical, se é esse o termo correto. Quando chegamos à história das trilhas de “Era uma Vez no Oeste” e “Era uma Vez na América”, os pelos já se eriçaram e “ciscos” entopem os olhos (e não, não é por causa do ar-condicionado ligado no “modo neve da Sibéria” e da poeira “estilo saariana” dos cinemas goianienses). O documentário também se presta para nos lembrar de que Ennio Morricone se tornou tão ligado aos diretores Sergio Leone e ao próprio Giuseppe Tornatore que quase nos esquecemos de tantas trilhas sonoras igualmente excepcionais que ele compôs para outros diretores: se eu fosse vocês, correria a algum aplicativo de streaming e ouviria as trilhas de “Il Federale”, “Sacco & Vanzetti”, “In Ginnochio Da Te”, “Allonsanfán”, “1900”, “A Batalha de Argel”… Uma lembrança: em “Sacco & Vanzetti”, Joan Baez fez a letra de “Here’s to You” e a canta; a canção se tornou um dos símbolos do movimento pelos direitos humanos e, mesmo sendo belíssima, é agora meio datada: baseada na então opinião corrente sobre a inocência dos anarquistas Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti quanto a um roubo e dois assassinatos, o fato é que evidências recentes comprovam que eles cometeram mesmo os crimes.

Se alguém duvida da importância de Ennio Morricone, lembremos que ele nos deu a ligação, hoje feita quase automaticamente por nossas mentes, digamos assim, de oboés com índios e missões jesuíticas, de flautas de Pã com mafiosos americanos, de gaitas, assobios e uivos de coiote com westerns… E notem: meu cérebro é preparado para trabalhar apenas (ou quase somente) com palavras impressas, tanto que sou incapaz de fazer operações matemáticas, tocar algum instrumento musical ou manter um relacionamento amoroso de longo prazo (será que uma lobotomia resolve a questão amorosa?); entretanto, reconheço uma música de Morricone logo nas primeiras notas, tão peculiar era o seu estilo, brilhante mesmo quando repetitivo (o escritor Thomas Bernhard aí está para também nos fazer ver que a repetição, como estilo, pode beirar a genialidade). Sua música aplicada (porque feita para o cinema e a televisão, diferentemente da “música absoluta”) é indissociável das cenas em que são tocadas; contudo, também parece que o italiano fez “filmes paralelos” com as trilhas, como alguém afirma no documentário. É uma tese contraditória e, ainda assim, verdadeira.

Em resumo: Tornatore me deu (mais) um projeto de vida: assistir a todos os filmes com trilha de Ennio Morricone, que praticamente se torna nosso “amigo” no documentário. Será uma obra para a vida toda — porém, quem está com pressa aqui?

Ah, sim: todos nós temos um Morricone preferido; o meu, eu admito, muda a cada semana: nesta, é “The Ecstasy of Gold”.