Aquele Rio de amor que (ainda) não se perdeu

Aquele Rio de amor que (ainda) não se perdeu

Uma das formas de amar o Rio é chegar à cidade num dia de sol e torcer para que o passar dos dias arrefeça um pouco o calor, mas não muito quando der praia, porque aí a sensação térmica deverá estar no teto do Sete-Peles: valerá a pena, há sempre o chope restaurador de ânimos e o antigo mar carioca, no qual tantos eventos históricos ocorreram, permanece sempre próximo — banhar-se nele é como se molhar na própria História, com inicial maiúscula mesmo.

Ter amigos na cidade é fundamental, isso para já se viajar com algo vagamente marcado, uma rabada com agrião no Clipper, uma empada de camarão no Salete, um fígado à lisboeta na Tasca do Edgar, talvez até mesmo uns tapas na Adega Pérola ou um chope no Pavão Azul. Será que o novo Parada de Copa sucedeu à altura o tradicional e hoje defunto Cervantes? Sobretudo, é de ordem não pressionar os amigos; afinal, os horários são deles, horários difusos e incertos como o próprio chão em que habitam, outrora feito de charcos, mangues e lagoas.

Se navegar é preciso e viver não é preciso, passear no Rio tem algum grau de precisão (exatidão), apesar da dispersão geral de todos na cidade. É necessário ir construindo um Rio afetivo-cultural-gastronômico a cada viagem, numa espécie de aluvião de “carpe diem”. Quando se bebe no Pavão, por exemplo, conta muito saber que a Delegacia de Polícia em frente é onde “trabalha” o delegado Espinosa, personagem dos romances policiais de Luiz Alfredo Garcia-Rosa, e também que logo acima, na Rua Tonelero (ninguém concorda — Tonelero, Toneleiro ou Toneleros?), no número 180, Carlos Lacerda sofreu o atentado de 1954, aquele que mudou o rumo da história do país e fez tombar Getúlio Vargas e, por extensão, o próprio Lacerda, que caiu com o mesmo tiro com que Getúlio se matara; tombados ambos, vieram JK e Brasília…

Aos poucos se vai montando um mapa mental da cidade e das suas muitas transformações, desde os vários aterros às mudanças de modelo: de cidade portuguesa ela passou a ser francesa; depois, tornou-se americana; e hoje ela é… bem, é algo indefinível. Quando se reza na Igreja de Santa Luzia, vejam só, o espanto é gigantesco: o mar, atualmente bem distante dali, batia às suas portas. Em cidades assim, caminhar é o modo ideal de locomoção, porque nos permite fazer a arqueologia das várias camadas sobrepostas dos muitos Rios que existiram: no Centro, anda-se com os olhos postos no segundo andar dos predinhos antigos; na Glória e no Flamengo, vendo a beleza dos seus edifícios das primeiras décadas do século 20; em Copacabana, mirando a arquitetura dos anos 50 e 60; em Ipanema, atento aos ecos da boemia de 1960-80. Já na Barra temos de notar a orla de minúsculos biquínis e pelos dourados, que humanos somos.

No mais, é acordar sem programação e ficar em dúvida se o jornal do dia deva ou não ser comprado, e depois passar a manhã aguardando as chamadas dos amigos: um chope haverá de surgir, em boa companhia e sem planos prévios. À mesa, o mais democrático dos direitos será, claro, exercido: falar mal do governo, qualquer que seja ele (tão democrático que Pedro Aleixo, governador de Minas, lamentava não poder criticar o próprio governo). A tarde pode se estender no mesmo lugar do almoço alongado ou pode ocorrer alguma mudança de bar; alguém se recordará de que talvez ainda se consiga ingressos para o jogo do Flamengo e lá se vão todos para um dos grandes espetáculos da Terra, uma partida de futebol no Maracanã. Claro, não se foge de uma roda de samba à noite. E assim um Rio personalíssimo vai se criando para cada um que o visite sempre; talvez, então, aquele “Rio de amor que se perdeu”, como na canção do Tom (ou do Vinicius?), ainda exista, mesmo que de modo individual e não coletivamente.

Volta-se então para o hotel, ligeiramente embriagado e dando-se razão à velha ideia de termos duas capitais (presidência e Congresso em Brasília; Supremo no Rio); topa-se com o Chico Buarque caminhando no fim da tarde e ri-se do fato de que ninguém dá a menor pelota para a fama alheia. Já no hotel, dúvidas se instalam: samba na Pedra do Sal, boteco pé-sujo ou restaurante estrelado? Sem muita convicção, vai-se de camarão na moranga, o melhor do país, no Aconchego Carioca; com mesas pegadas umas às outras, o Aconchego é também um ótimo ponto para se ouvir qualquer conversa de desconhecidos, até que um deles note a curiosidade e, cariocamente, sorria e pouco se importe com isso.

De volta ao hotel, uma conferida na previsão do tempo: é, vai dar praia no outro dia. Quiosque na Barra ou no Leblon? Será que o Azur sobreviveu bem durante a pandemia? Talvez uma visita, antes da praia, ao Palácio do Catete para o indispensável arrepio diante do revólver de 54? Ou ao Museu Histórico Nacional e ao Museu Nacional de Belas Artes, com todas aquelas pinturas que já vimos nos livros escolares. Bar da Laje, com a aventurosa subida, de mototáxi, Vidigal acima? Acorda-se e logo se vê que os amigos já estão cuidando da feijoada que prometeram. Museu, praia e feijoada — eis o programa do dia. Encerrada a obrigação terrena, é hora da obrigação de fé: uma prece na Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, gloriosa ela também e bela como devem ser as obras dedicadas a Deus. E o próprio Rio não é uma obra dedicada a Deus?

Sim, o nosso Vinicius (ou o Tom?) estava certo:

Rua Nascimento Silva, 107
E você ensinando pra Elizeth
As canções de Canção do Amor Demais

Lembra que tempo feliz?
Ai, que saudade
Ipanema era só felicidade
Era como se o amor doesse em paz

Nossa famosa garota nem sabia
A que ponto a cidade turvaria
Esse Rio de amor, que se perdeu

Mesmo a tristeza da gente era mais bela
E além disso se via da janela
Um cantinho de céu e o Redentor

É, meu amigo, só resta uma certeza
É preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor.

É possível o amor doer em paz? No Rio, sim.