O filósofo holandês Baruch de Spinoza (1632-1977) defendia que a natureza de divindade de um ente capaz de reger todos os outros residia exatamente no seu caráter de poder se imiscuir a tudo, afinal, todos os seres e mesmo todas as coisas têm seu lado luminoso, celestial, e sua porção sombria, que nunca é dada ao acaso, existe justamente por obedecer a uma determinação do próprio Altíssimo. Para muitos pensadores que se detêm sobre a obra de Spinoza, é dificílimo entender por que Deus, que tudo sabe, que vê todas as coisas que se passam desde o princípio dos tempos, inclusive as que ainda nem saíram do coração do homem, molda uma criatura à sua semelhança e imagem, mas uma criatura imperfeita, que peca, que rouba, que mata e, não satisfeito, malgrado saiba que o homem é fraco, é mau, o pune por suas faltas, quando, Nome sobre todo nome, deveria interferir e apartar do gênero humano a sanha bestial — que sempre inventa meios de se reformular e se perpetuar pelos séculos dos séculos. Seria Deus também imperfeito, pecador, facínora, e, para piorar, um sádico? Uma explicação rasa para tal emaranhado de hipóteses tão cabeludas é o surrado (e preciso) livre-arbítrio: Deus dá ao homem o dom da vida; cabe ao homem viver sua própria vida, Deus não irá vivê-la por ele. É como se nossos pais nos dessem um presente valioso e o retivessem numa redoma de cristal, de cuja chave so eles têm, e nos concedesse desfrutar do tal regalo só muito espaçadamente. Assim como estão na vida a filosofia e Deus, imiscuído ao princípio da hegemonia da própria vontade sobre o que os outros esperam de nós — sempre calcado no discernimento —, estão na morte e na maneira como os encaramos.
“Tempo de Caça” (2020) talvez não chegue tão longe em suas pretensões filosóficas — e nem tem obrigação alguma disso —, mas, colateralmente, o diretor sul-coreano Yoon Sung-hyun erige um drama com raízes bem fundadas quanto a buscar explicações para as condutas mais reprocháveis no homem, exaltando a honra torta de um criminoso que não condescende com amadores, pelo contrário: os persegue às últimas consequências, não se furtando a deixar um rastro de destruição por onde quer que vá até que leve sua missão a bom termo. Para começo de conversa, há que se pontuar algumas coisas. Na Coreia do Sul não existe essa história de cidadãos comuns comprarem armas a qualquer tempo, muito menos guardá-las em casa, como se vê nos Estados Unidos. Armamentos de quaisquer calibres ficam na delegacia de polícia, e essa é uma das razões por que tiroteios são tão raros no país — o que não quer dizer necessariamente que não haja violência por lá, praticada por indivíduos em geral dotados de muito traquejo com facas, machados e tesouras, como se vê em produções a exemplo de “Parasita” (2019), o celebrado ganhador dos Oscars de Melhor Filme e Melhor Diretor de Bong Joon-ho. Apesar de ter nascido e passado alguns anos de sua vida na América, Yoon frequentou a escola de cinema na terra de seus antepassados, ou seja, seu roteiro segue uma lógica híbrida, pendendo ora para a violência gratuita de clássicos tarantinescos como “Pulp Fiction: Tempo de Violência” (1994), os da franquia “Kill Bill” (2003) ou mesmo “Era Uma Vez… Em Hollywood” (2019), ora para a moderação do estilo vista em produçoes não menos viscerais, mas bem menos cruentas, casos de “Rastros de um Sequestro” (2017), dirigido por Jang Hang-jun; “A Ligação” (2020), de Lee Chung-hyeon; ou “Carter” (2022), levado à tela por Jung Byung-gil.
O diretor abre seu filme mostrando uma Coreia do Sul que sobrevive à crise financeira que arrasou a economia e gera manifestações populares diárias por direitos trabalhistas. A atmosfera de abandono, com tomadas sob plano geral em ruas desertas, sobretudo a noite, dá a noção exata da distopia de que Yoon quer falar, momento em que apresenta seus personagens. Jun-seok, o ex-presidiário vivido por Lee Je-hoon, tenta persuadir os amigos Jang-ho, personagem de Ahn Jae-hong, e Ki-hoon, interpretado por Choi Woo-shik, a encarar mais uma tentativa de ficar rico sem esforço, dessa vez, segundo ele, sem falhas que os levem a penar por três longos na cadeia, com direito a uma vida inteira de arrependimentos e pesadelos. Fica implícito no texto de Yoon uma certa inocência de seu personagem central, que não reconhece mais seu país e talvez imagine que a tudo possa voltar aos eixos antes que seus amigos desistam dele — ou nem tanto, uma vez que sabe que ninguém deve estar muito disposto a oferecer trabalho a um jovem recém-saído da penitenciária. Mesmo assim, faz a cabeça dos outros, valendo-se do argumento de que a polícia não se mete com donos de cassinos e vice-versa. O problema é que agora a estrada tem um atalho.
O diretor elabora satisfatoriamente a natureza marginal do núcleo de Jun-seok, sacando da manga nos momentos oportunos a interdependência de um pelo outro, obrigados a se fazerem gentilezas como tomarem parte nos imbróglios que cedo ou tarde vão arruinar suas vidas em nome de uma amizade funesta. O psicopata de Christopher Sean dá um molho à narrativa, até o final, algo enigmático, deixa no ar a chance de uma continuação. E assim se passam 135 minutos, de um só golpe.
Filme: Tempo de Caça
Direção: Yoon Sung-hyun
Ano: 2020
Gêneros: Crime/Drama
Nota: 9/10