Casamentos podem ser uma fonte quase infindável de amor, prazer e autoconhecimento — “quase” porque todo casamento é interrompido, ou pela morte, ou pela própria vida. Pior que casamentos que acabam porque já faltos de todo sentimento, são uniões que se prolongam para além do razoável, pela mesma razão, apenas pelo medo de recomeçar. Essa é uma história que se repete com alguma frequência, no mundo real e fora dele, sobretudo no cinema, em filmes dotados de narrativa sem muitas nuanças da agonia que o fim de uma relação traz, e não só para os diretamente envolvidos. Cônjuges sofrem, por óbvio, mas a tristeza que a nova configuração familiar encerra, com um ex-casal de ex-marido e ex-mulher, pai e mãe de filhos que não hão deixá-lo de ser nunca, se alastra por toda parte, chegando inclusive a quem não tem vínculo algum com a história, mas oferece um ombro amigo, uma palavra de reconforto ou não se furta a mostrar-se interessado em explorar a miséria de almas que se fecham em sua própria concha de mal e desalento, supondo que assim lidará melhor com o torvelinho que ameaça tornar-se mais e mais devastador.
O assunto povoa o imaginário popular, a vida como ela é e o cinema, que irá de lançar mão do tema enquanto houver a menor perspectiva de corações partidos vagando pela escuridão cerimoniosa das salas de projeção, do breu ruidoso e lascivo das boates, da amplidão banhada de sol e melancolia dos parques — tanto que acaba renascendo pelas mãos do mesmo diretor, que, claro, dá um jeito de conferir um verniz de novidade ao novo velho trabalho, ou elaborando o roteiro de modo a privilegiar outros pontos de vista, ainda que com sutileza quase invisível, dispondo de um elenco azeitado e, em especial, de uma protagonista cujo carisma se vai revelando à prova de ataques de fúria, do público, que poderia se identificar com a primeira dona da personagem, ou da critica, que, naturalmente levanta comparações, e mais naturalmente ainda, encontra esses pontos de contato entre um e outro trabalho, entre uma e outra performance, mas acha também as particularidades que garantem a cada filme seu espaço, não sendo necessário exatamente se preferir o primeiro ao segundo ou vice-versa.
“Gloria Bell” (2019) é, sem dúvida, uma versão mais limpinha de “Gloria”, que conferiu a Paulina García o Urso de Prata de Melhor Atriz no Festival de Berlim, em 2013, quando foi lançado, mas tem seus méritos. Neste, o diretor chileno Sebastián Lelio transporta sua personagem central da quase obscura Santiago para a feérica Los Angeles — o que não é pouco —, mas mantém o argumento que sustenta todo o seu roteiro, coescrito com Alice Johnson Boher, isto é, uma mulher madura numa busca aflitiva por felicidade (já volto ao tema), sendo obrigada a enfrentar toda sorte de apuros colaterais que sua condição de mulher — e de mulher madura e solitária — enseja. No mais, os dois, tanto o longa de 2013 como o de seis anos depois, replicam quase tudo o que já foi levado à tela em produções sobre mulheres de meia-idade que não se conformam com o diagnóstico da amargura por não terem sido felizes, ou plenamente felizes, numa primeira união, o que dá azo à pergunta fulcral, para ambos: alguém é plenamente feliz? Por quanto tempo? Em 2019, sai, claro, a inflamada conjuntura política do Chile daquele ano para assumir uma trama em que sua personagem-título continua escandalizada frente a um mundo com o qual não se identifica e que segue a repelindo, todavia mais glamourosamente, graças aos neons dos clubs da Cidade dos Anjos.
Julianne Moore é uma Gloria (sem o acento) muito mais empoderada e muito mais bonita (lá vem pedrada das feminázis…), ainda que me sejam exasperantes os óculos, onipresentes e imensos (mais pedradas), que todo mundo torce para vê-la atirar longe, como uma espécie de Betty, a Feia já na reta final, para aproveitar o mote da releitura. Permanece indo e voltando do trabalho cantando a plenos pulmões enquanto dirige, cuida do apartamento em que vive, aqui aparentemente maior, sem o auxílio de uma empregada doméstica, como no enredo anterior, assiste aos filhos, Anne e Peter (e não mais Ana e Pedro), de Caren Pistorius e Michael Cera, e se preocupa com a otite do neto, filho de Peter. Há que se apontar uma solidão tanto mais acentuada da Gloria de 2019, que não conta mais com a roda de amigas com que frequentava os bailes para cinquentões que rescendem a uma doce nostalgia e onde conhece o possível novo companheiro. Está mais moderninha e saracoteia pelas casas noturnas de L.A., da mesma forma que os homens — os direitos são iguais, claro. Numa dessas, topa com Arnold, o cafajeste da vez, aqui interpretado por John Turturro. Não demora e estão trocando juras de amor, até que seu conto de fadas começa a fazer água.
Lelio conserva a essência das subtramas já expostas anteriormente, com destaque para a com que escolhe fechar a história desditosa de sua Gloria infeliz, de uma puerilidade saborosa. Se há alguma novidade, e é ele quem o insinua, é que boates são lugares muito mais hostis que festas para solteirões e divorciados. Assim como Glória, Gloria Bell ainda é uma mulher à procura do amor, mas lamentavelmente mais perdida, mais ensimesmada, mais só. Mas, já que se passaram seis anos, mais sábia. É o que eu, sinceramente, espero.
Filme: Gloria Bell
Direção: Sebastián Lelio
Ano: 2018
Gêneros: Romance/Drama
Nota: 8/10