Drama jurídico inteligente, perturbador e cheio reviravoltas é uma pequena obra-prima na Netflix

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Em muitas ocasiões, o cinema se parece com uma orquestra. Diretores são como maestros, levando ao público a melodia ora mais belicosa das cordas e metais, ora mais suave, do piano e do cravo. Não por acaso, em idiomas como o italiano, se usam verbos como “conduzir” e “reger” para se fazer referência a um e outro ofício.

Mais uma situação em que se poderia empregar essas palavras sem nenhum estranhamento ou prejuízo semântico é em atividades relacionadas à justiça, por exemplo. Típico representante do que se convencionou denominar filme de tribunal, “O Caso Collini” vai muito além. A produção, lançada em 2020 e dirigida pelo bávaro Marco Kreuzpaintner a partir da história registrada no romance homônimo de Ferdinand von Schirach, se destaca justamente por fundir diversos gêneros, apresentando as muitas reviravoltas comuns nessas tramas, o que o público, a crítica e, em especial, o mercado sabem reconhecer, ainda que o enredo obedeça à sua própria lógica e se desenrole bem lentamente, sem simplificações fáceis à medida que o cronômetro avança e se tem de dar a trama por encerrada.

Kreuzpaintner respeita as escolhas artísticas de Schirach, quais sejam, a manutenção do distanciamento emocional entre as personagens — o que, num juízo de valor apressado, determinista e um tanto preconceituoso, se poderia atribuir à, digamos, economia sentimental tedesca, que neste caso funciona muito bem. A despeito da tensão onipresente da história, todos os atores primam por um desempenho enxuto, o que, por óbvio, desagrada muita gente. A linguagem teatral, por paradoxal que soe, predomina em grande parte do longa, mormente nas sequências na Corte, expediente de que o dinamarquês Lars von Trier lança mão em “Dogville” (2003), alcançando um resultado surpreendente. Em “O Caso Collini” a empreitada também se revela um grande acerto de Marco Kreuzpaintner, uma vez que transmite a postura austera de quem se vê obrigado a estar sob aquelas circunstâncias.

O filme tem um aspecto melodramático interessante, aludindo ao folhetim televisivo em vários momentos, sobretudo a partir do início da segunda metade da história, quando já se desenrola o julgamento propriamente. Na Berlim de começos do século, em 2001, Caspar Leinen (Elyas M’Barek), um advogado ainda inexperiente, aceita defender Fabrizio Collini (Franco Nero), um pacato septuagenário sem antecedentes criminais até aquele momento, em que se torna réu confesso do homicídio de um empresário poderoso, também conhecido por seu envolvimento em atividades filantrópicas. Leinen pega o caso sem tomar conhecimento de que o morto é Hans Meyer (Manfred Zapatka), que o ajudou a se formar pagando seus estudos e com quem mantinha uma relação afetiva. À medida que o advogado se aprofunda nos detalhes do processo, se inteira que Meyer encerra um mistério repulsivo sobre seu passado, um evento que se liga ao regime nazista de Adolf Hitler (1889-1945) no decorrer da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Seu dilema torna-se ainda mais grave porque Johanna (Alexandra Maria Lara), a neta de Meyer, com quem ainda tem um romance mal resolvido, toma a frente de tudo.

Muitos outros filmes de tribunal têm uma miríade de recursos técnico-narrativos mais ricos que “O Caso Collini”, e talvez o mais pungente, pela força do roteiro, ainda atual — possivelmente atual para sempre — seja “As Duas Faces de um Crime” (1996), de Gregory Hoblit; do ponto de vista da disposição das câmeras e do encaminhamento da história a partir do que se vê na delimitação quase claustrofóbica de um espaço em que predominam madeira e vidro, coalhado de gente, o contemporâneo “Os 7 de Chicago (2020), de Aaron Sorkin, já adquiriu a aura de obra-prima do cinema. Contudo, o trabalho de Kreuzpaintner tem inúmeros méritos, entre os quais otimizar o tempo, usá-lo a seu favor, e não permitir que os flashbacks sejam cansativos. O diretor encontra um jeito de inserir cada nova informação levada à tela de maneira orgânica, do contrário seria muito mais eficiente a linguagem do documentário ou do docudrama. Há quem torça o nariz também para esse elemento rítmico do filme, por considerá-lo uma imitação de Hollywood, aplicada com o intuito bárbaro de capturar logo a audiência. Tolice. O enredo é pleno de suas singularidades, que muitos também encararão à luz da excentricidade gratuita, a exemplo de Elyas M’Barek assumindo as vezes de narrador do filme, um narrador sui generis, já que a trama flui de forma corrida. Sempre que o ator, austríaco radicado em Munique de ascendência tunisiana, surge em quadro, se sabe que a trama promete dar uma guinada de 180 graus. E dá mesmo, conforme se vê até a derradeira sequência, inesperadamente poética, remetendo, ainda que sob um viés diametralmente oposto, ao sentimento de reparação, vigente em “Bastardos Inglórios” (2009), dirigido por Quentin Tarantino.

Com “O Caso Collini”, Marco Kreuzpaintner, ainda que sem querer, lega ao cinema uma contribuição inestimável na luta contra a barbárie, uma peleja encarniçada, sem fim, e, por isso mesmo, fundamental para a civilização a qualquer tempo.