O filme da Netflix que é um soco no estômago

O filme da Netflix que é um soco no estômago

Tomando por objetivo questionar a fragilidade de princípios e valores da dita civilização, manifestações artísticas como o cinema nos fazem acreditar que viver tem em si, alguma beleza, ainda que oculta. Filmes como “O Que Ficou Para Trás” deixam esse argumento um pouco menos genérico e etéreo.

A oportunidade dada a Remi Weekes, em seu primeiro trabalho no comando da câmera, pressupõe um movimento de oxigenação da indústria cinematográfica, que se espraia diretamente na direção das plataformas de streaming. Por meio desse expediente, constata-se dia a dia a renovação da atividade fílmica, que num processo admiravelmente orgânico, alcança outros públicos e, por conseguinte, amplia seu horizonte mercadológico.

O bom filme de terror sempre passa por cima da mera vontade de assustar. Em “O Que Ficou Para Trás” Weekes, cercado de elenco e equipe à altura de suas pretensões intelectuais, lança mão de recursos que serviriam a qualquer gênero, relegando o paradoxo de sensações incomodamente prazerosas ao se apreciar um enredo pleno de referências a ameaças reais e sobrenaturais a segundo plano. Aliás, a história tem ainda esse mérito, amalgamar num só todo realidade e fantasia, o horror da vida e a insana redenção que o pavor do ilusório encerra. Por meio da catarse do que se processara de maneira incompleta ou deficiente, é que se começa a entender como se pode reverter a degenerescência do existir.

O roteiro não só não abdica do susto pelo susto, o jumpscare, como ainda transita por subgêneros similares, utilizando-se de elementos bem carimbados em tramas dessa natureza — casa mal-assombrada, zumbi, terror psicológico, gore —, reservando espaço para construções estéticas mais sofisticadas, a exemplo das presentes nas narrativas lovecraftianas. H. P. Lovecraft (1890-1937), escritor americano que subverteu tudo o que já se havia produzido em terror ao empregar artifícios mais afeitos à ficção científica, é clara e propositalmente reverenciado em “O Que Ficou Para Trás”, o que não acontece com o romancista Mia Couto, por exemplo. O moçambicano tornou-se célebre no mundo todo graças à sua narrativa assumidamente inspirada pelo realismo mágico do colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014), mas influenciada na mesma proporção pelo baiano Jorge Amado (1912-2001).

Mia Couto soube extrair de cada um dos mestres o que precisava para fazer de sua literatura algo verdadeiramente autêntico. O real maravilhoso de García Márquez lhe vale quanto a dar vida a criaturas que se assenhoreavam de seus personagens no mundo dos sonhos, sendo a escrita de Couto uma das que mais louvam a experiência onírica já levada a prelo. Some-se a isso a escolha consciente — e mesmo militante — de retratar os tipos de sua aldeia. Numa prosa caudalosa sem ser prolixa, direta sem ser árida, o novelista, vencedor do Prêmio Neustadt, o Nobel americano, em 2014, retrata em sua literatura a história africana, as agruras e os costumes de seu povo.

A África foi mais um dos tantos territórios sobre os quais o Império Britânico (1583-1997) estendeu seus domínios por mais de quatro séculos. As chagas decorrentes desse evento, por óbvio, não fecham da mão para a boca, tanto que se arrastam até hoje. O apartheid, a segregação racial como política de Estado, vigente na África do Sul a partir de 1948, foi declarado oficialmente extinto em 1994, mas a discriminação, a falta de perspectivas, a miséria não respeitam decretos. Diante da proximidade da indigência e da fome — coroadas pela instabilidade política no Sudão do Sul, emancipado do Sudão em 9 de julho de 2011 —, Bol Majur e a mulher, Rial, resolvem emigrar para o Reino Unido, levando a filha, Nyagak. Mais uma das incontáveis faces do terror.

A adaptação dos Majur ao novo ambiente e à nova vida — agora sem Nyagak, que morreu durante a viagem — é penosa, mais para Rial que para o marido. O tormento dos personagens, padecendo de uma modalidade muito específica de sofrimento, hostilizados por uma vizinhança que os despreza (pretos como eles, inclusive), aprisionados num apartamento que à primeira vista parecia um sonho, mas logo se revela a encarnação de seus muitos problemas, vai ganhando corpo à medida que notam quão encalacrados se acham. A infelicidade contida no que Weekes começa a desvelar ali funciona como a isca que faltava para “O Que Ficou Para Trás”, finalmente, capturar a plateia.

Partindo da intenção de arrancar o espectador do raciocínio já estabelecido mediante o uso de metáforas como a da casa que não tolera seus novos moradores, o filme toca na ferida aberta da degeneração da política — o motivo primeiro que os lança no redemoinho de ter de se moldar à nova pátria que os acolhe (se de bom grado ou não, é matéria para outro artigo) —, da discriminação racial que redunda desse êxodo, do estigma de serem diferentes (de que não podem se livrar, uma vez que sua pele lhes recorda sempre), fatores que os impedem de deixar a condição de excluídos, de párias. Em “Nós” (2019), o diretor Jordan Peele também aborda o preconceito tomando por fundamento a história de uma família negra, e rica, às voltas com seus problemas de consciência e complexos de inferioridade — que não admitem nem para si mesmos, com as luzes apagadas —, nutridos pelo preconceito que têm contra si mesmos por poderem usufruir uma condição de vida sem maiores apuros de dinheiro. O caso dos Majur é diametralmente oposto ao dos protagonistas do filme de Peele: anseiam por uma chance, por sucesso, essa é a seiva que os mantém vivos. O vigor com que perseguem esse sonho, que se mostra tão ansioso por se realizar ainda que não tenha nenhuma possibilidade para tanto, é o grande fantasma que se apossa da vida dos dois, já assombrados o bastante pelas memórias da pequena Nyagak, um vínculo com seu passado do qual nunca conseguirão se desfazer, por mais ricos que algum dia num futuro muito incerto possam vir a se tornar.

O exercício de digressão filosófica proposto por Remi Weekes em “O Que Ficou Para Trás”, emoldurado por recursos técnicos que realçam sua criatividade como realizador de cinema, suscitam na audiência uma sensação estranha, um misto de piedade e revolta, tomados que somos pela energia da trama. Uns mais que outros, somos todos responsáveis pelos desastres da civilização ao longo da história.