O suspense introspectivo e brutal que é uma joia perdida na Netflix

O suspense introspectivo e brutal que é uma joia perdida na Netflix

O inferno não são só os outros, mas libertar o diabo em nós às vezes ajuda. Todos experimentamos, em um ou outro momento, a sensação de não conseguirmos nos ajustar à vida como ela é, à vida real. Ter um emprego do qual não se gosta, mas imprescindível para se manter; não ter de viver na rua, ainda que a casa em que se mora esteja longe do palacete com que sempre se sonhou e, por uma grande injustiça — ou desalinhamento dos astros, ou carma —, nunca se pôde comprar; estar a anos-luz das festas badaladas de celebridades que muitas vezes nem parecem reais de tão perfeitas: assim se constitui a jornada na Terra para 99,9% das pessoas.

A anti-heroína de “Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo” (2017) pertence a esse grupo majoritário. Ruth Kimke parecia inclinada a continuar imersa no mar de mediocridade que inunda sua vida, até que um evento muito particular a impele a tomar uma atitude. Sua casa é roubada, o que em verdade não representaria um problema fundamental, visto que não esconde nenhum tesouro. Ou melhor, ela tinha, sim, uma relíquia, que até poderia render uns bons trocados, irrisórios, se comparados ao valor sentimental que encerram. Além do laptop e de sua munição de remédios controlados, a auxiliar de enfermagem ficou sem uma baixela de prata, presente da avó já falecida.

O sentimento de ter sido vilipendiada, invadida, alvo de uma violência desnecessária e injustificável, lança ao rosto da protagonista um desafio de que não pode fugir, decerto o maior de sua vida — ou simples existência. Não é mais possível seguir ignorando todas as evidências de que ninguém se importa com ela e, pior, não hesita um segundo em passar por cima de suas vontades, ou mesmo de seu próprio corpo, se lhe convém. Chega de recolher as mercadorias que os outros derrubam no supermercado, nada mais de tolerar os cães de toda a vizinhança fazendo seu jardim de privada — com a cômoda anuência dos donos, claro. Determinadas coisas terão de permanecer iguais, a exemplo de caminhonetes que consomem dez vezes mais combustível que um veículo de passeio e lançam na atmosfera a massa venenosa de monóxido de carbono que nos vai matar a todos num futuro muito mais próximo do que se supõe — e ela terá de lidar com isso. Silenciosamente. Como a ovelha que não suspeita de que está sendo enviada ao matadouro.

A partir da obra do pensador dinamarquês Søren Aabye Kierkegaard (1813-1855), o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980) desenvolveu o existencialismo, que prega que a existência, isto é, a vida ela mesma, prevalece sobre a essência, sobre aquilo que a natureza brada que somos. A certo momento de “Huis Clos” (traduzido no Brasil como “Entre Quatro Paredes”), peça escrita por Sartre em 1944, se revela um dos lemas da corrente filosófica difundida pelo autor. “O inferno são os outros” sem duvida é uma frase de efeito, que impacta o interlocutor sem prévio aviso, dada a força das palavras que a constituem. Invocar o diabo e tudo o que lhe faz menção é a estratégia irretocável quanto a tentar diminuir alguém, mostrar-lhe nosso desprezo, nosso asco, até, repulsa e nojo que nós igualmente lhe inspiramos, por óbvio. O expediente de considerarmos o outro como o algoz de nossas trajetórias — que, em grande parte, se fundamentam nas escolhas que nós mesmos fazemos — é muito eficiente quanto a nos aliviar um pouco o peso na consciência por decisões pelas quais optamos numa quadra específica da vida: as essenciais, as que fazem a diferença e não raro interferem em como a vida se nos mostra, quiçá em caráter irremediável. Admitir o outro como o inimigo a ser vencido, o grande obstáculo a ser superado, um torvelinho que nos suga sem clemência para a irrelevância ou para o caos, um território abafadiço e insalubre em que somos confinados e do qual temos de escapar a todo custo, é só imaturidade da mais grossa. O inferno, como sabe qualquer pessoa honesta e razoável, somos nós mesmos.

A busca de Ruth atrás dos bens que lhe surrupiaram adquire tons de genuína odisseia em “Já Não Me Sinto em Casa Nesse Mundo”, primeiro trabalho do ator Macon Blair na direção, no momento em que ela, como a típica mocinha dos primórdios do folhetim na França do século 19, recorre a quem tem o poder e a autoridade para ajudá-la, mas prefere — e ela é obrigada a comprovar sua insignificância outra vez, agora oficialmente — se omitir. De maneira muito sutil, Blair tece uma crítica pertinente à polícia, no caso em tela à dos Estados Unidos, quando acionada por quem deveria conhecer o seu lugar e não importunar o aparato estatal a fim de resolver suas picuinhas. O policial negro que esnoba uma cidadã branca, a contribuinte, a pagadora de impostos que lhe proporciona um salário ao término de cada mês, não é casual na narrativa. Esse arco dramático, pleno de toda a substância para ser mais bem desenvolvido, lamentavelmente é desperdiçado, um ponto fraco do filme. Ruth foi preterida, está claro, por ser pobre; em se tratando de uma mulher afrodescendente, mas endinheirada, certamente as coisas se dariam de outra forma — ou essa mulher nem precisaria estar se sujeitando a tamanha ignomínia. A única alternativa que lhe ocorre é engolir o pouco orgulho que ainda lhe sobra e procurar Tony, um dos vizinhos cujo cachorro defeca no seu quintal. Tipo completamente gauche, como Ruth, algo megalomaníaco, que sonha com a possibilidade de dar à sua vida uma aura extraordinária qualquer, Tony aceita a proposta de investigar o caso e punir o malfeitor.

Tudo corre bem, mas naturalmente a aventura teria de degringolar em algum ponto, uma vez que Ruth e Tony são dois amadores — e, mais uma vez, simplórios, malgrado não se reconheçam como tal. Depois de um sofrimento para o qual não estava pronta, a personagem central reave seus inestimáveis talheres de prata e recupera coisas muito mais preciosas; ainda que as lembranças de um tempo que não volta queiram dominá-la, Ruth se mostra senhora de sua vida, senhora de si. Quem sabe apta a encontrar um recanto verdadeiramente seu.