Inspirada em ‘8½’ de Fellini, deliciosa comédia indicada ao Oscar, no Prime Video, é antídoto contra o mau humor Divulgação / Sweetland Films

Inspirada em ‘8½’ de Fellini, deliciosa comédia indicada ao Oscar, no Prime Video, é antídoto contra o mau humor

Woody Allen tem uma obsessão por si mesmo, felizmente. É de lá que saem os tipos impagáveis com que foi adornando o cinema nas últimas seis décadas, todos de alguma forma um amálgama de sua personalidade artística e seu controverso jeito de ser. Talvez seja fácil ser Woody Allen — sobretudo quando se é Woody Allen —, e essa decerto é o primeiro mandamento que observa ao rodar um filme como “Desconstruindo Harry”, cheio de autorreferências e de circunvoluções, sem que essa exótica metalinguagem interfira no que o espectador pode captar de suas histórias.

Como em nenhum outro trabalho, antes ou depois, aqui o diretor ilumina facetas que admite incômodas, quiçá repulsivas, até para seu espelho tão permissivo, e nesse movimento arrasta quem não tem medo de também olhar para si. Depois de tudo arranjado, qualquer um diz que é fácil pensar e pôr em marcha um trabalho em curtos intervalos de um para o outro, que ser Woody Allen é uma grande alegria, tão esplendorosa que até sufoca os vários momentos de hesitação, de fracasso, de desespero. Talvez, mas haja talento para ver tanta graça na falta de graça.

Harry Block tem experimentado dias nada gloriosos. Não por acaso Allen escolhe esse nome para seu protagonista, um escritor que passa por uma severa obstrução criativa, cujas razões podem ser colhidas já na primeira sequência. Numa casa de campo em Connecticut, uma família se reúne num churrasco no qual, mais que se decidir por frango ou carne, os comensais têm de ocultar segredos escabrosos uns dos outros.

Ken, o alter ego de Harry vivido por Richard Benjamin, ataca a cunhada, Lucy, de Judy Davis, na frente da matriarca cega da família, o que poderia ficar para sempre no fundo de um baú de ossos, não fosse Harry, consultando apenas seus botões, resolver publicar tudo em seu novo romance. Excetuando-se a parte da artificiosa figura encarnada por Jane Hoffman (1911-2004), é tudo verdade, e esse arroubo de franqueza por pouco não custa os miolos desse contador de histórias temerário, surpreendido no meio da noite por Lucy, armada e furiosa.

Harry não tem nenhum pudor de usar as pessoas, o que retroalimenta o mecanismo de fuga com que tem ganhado a vida: Allen dá a impressão de que sua convivência traumática com as pessoas, a começar por aqueles de quem apreendeu uma pálida ideia de família, só serve mesmo para encher seu caderno de notas com comentários argutos para próximos textos. A fixação pela irmã da esposa, já explorada de modo definitivo pelo brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980), por exemplo, dá lugar a apontamentos de Harry-Allen sobre a relação com o filho, de quem não consegue se aproximar, por causa (também) do rancor de Joan, a última das três ex-mulheres e ex-terapeuta, com Kirstie Alley (1951-2022) em passagens breves, mas decisivas.

O andamento episódico de “Desconstruindo Harry”, pulando de uma encrenca para a seguinte, nunca oferece riscos de incompreensão para o espectador, pelo contrário. Sacadas geniais, como Mel, o ator sem foco de Robin Williams (1951-2014), meio Philip Roth (1933-2018), ou o inferno onde escritores são mandados para o nono andar, alusão ao Dante Alighieri (1265-1321) de “A Divina Comédia” (1472), chefiado por Billy Crystal, conferem requinte ao enredo absurdo de um homem comum, demasiado comum. Ninguém é Woody Allen impunemente.


Filme: Desconstruindo Harry
Direção: Woody Allen
Ano: 1997
Gêneros:
Comédia
Nota: 10