Aclamado em Sundance, filme com Joaquin Phoenix que você ainda não viu, mas deveria, está no Prime Video Divulgação / Amazon Prime Video

Aclamado em Sundance, filme com Joaquin Phoenix que você ainda não viu, mas deveria, está no Prime Video

Em geral, quando se precisa ser mais astuto que o próprio destino, das duas, uma: ou se voa alto, ou se despenca do segundo andar. O caso de John Callahan (1951-2010), entretanto, faz pouco de qualquer previsão, e o cartunista, um talento raro para, com uma só canetada, dizer verdades urgentes e fesceninas e fomentar discussões as mais honestas e corajosas acerca dos temas mais espinhosos — incluindo aqueles que o tocavam de maneira direta —, ainda é, transcorrida década e meia de sua morte, um provocador na melhor acepção do vocábulo.

“Não se Preocupe, Ele Não Irá Longe a Pé”, registro um tanto breve, mas pleno de detalhes reveladores da vida e da obra de Callahan, não aceita sentimentalidades redutoras, desvia do politicamente correto e alcança seu objetivo, qual seja, levar o público a enxergar com os mesmos olhos o diferente, aptidão que caracteriza o trabalho de Gus Van Sant desde sempre. O diretor volta à linguagem usada em sucessos como “Gênio Indomável” (1997) ou  “Milk: A Voz da Igualdade” (2008) — indicado ao Oscar de Melhor Filme e vencedor na categoria Melhor Roteiro Original, com Dustin Lance Black —, e o resultado é uma trama arejada, na qual o humor presta-se a fustigar os costumes enquanto planta dúvidas sobre o quão feliz alguém é, a despeito dos privilégios mais vulgares de que possa desfrutar.

O texto de Van Sant e Jack Gibson apela a todos os sentidos ao ilustrar a história com as inventivas charges de Callahan, imprimindo à narrativa um ar de revista em quadrinhos numa homenagem de que o autor, um durão convicto, decerto teria gostado. O diretor e seu corroteirista adaptam passagens da autobiografia homônima do artista, publicado em 1989, explicando em parte a loucura fundamental do personagem, um alcoólatra inveterado que só se dá conta do poder de seu vício no momento em que, voltando de uma épica farra, sofre um acidente no Fusca azul que Dexter, o melhor amigo cuja alcunha pornográfica alardeada para quisesse ouvir dá uma ideia da devassidão moral daqueles tempos e, sobretudo, dos lugares que frequentam.

Se a onipresença de Jack Black incomoda, chegando a eclipsar a abordagem da doença de Callahan, Joaquin Phoenix, tal como seu personagem, vira o jogo. Numa mudança brusca de cadência, Van Sant se concentra no processo de cura do desenhista, momento em que tira alguns coelhos da cartola. No grupo de apoio a que passa a comparecer com regularidade, conhece Corky e Reba, tão ou mais infelizes que ele, e as performances de atrizes bissextas a exemplo de Kim Gordon e Beth Ditto, a roqueira do Sonic Youth e a ex-vocalista da banda de indie rock Gossip, respectivamente, impressionam — sem esquecer, por natural, quem entende mesmo do riscado. Donnie Green, o padrinho da turma de Jonah Hill, a disparar uma tirada melhor que a outra, aplica novas demãos de comicidade ao todo. Até que a desdita também o colhe.

“Não se Preocupe, Ele Não Irá Longe a Pé”, no Prime Video, junta-se à vasta galeria de filmes sobre que descobrem-se fortes graças a suas limitações, como se assiste em “Amargo Regresso” (1978), dirigido por Hal Ashby (1929-1988); “Meu Pé Esquerdo” (1989), levado à tela por Jim Sheridan; “O Escafandro e a Borboleta” (2007), a cargo de Julian Schnabel; e “A Teoria de Tudo” (2014), capitaneado por James Marsh. Heróis salvam a humanidade; homens comuns salvam-se a si mesmos, eis um dos possíveis lemas que John Callahan defenderia naqueles garranchos fenomenais.


Filme: Não se Preocupe, Ele Não Irá Longe a Pé
Direção: Gus Van Sant
Ano: 2018
Gêneros: Comédia/Drama
Nota: 9/10