Filme existencialista com Joaquin Phoenix e Emma Stone, baseado na filosofia de Immanuel Kant, está na Netflix Divulgação / Sony Pictures

Filme existencialista com Joaquin Phoenix e Emma Stone, baseado na filosofia de Immanuel Kant, está na Netflix

Segundo Immanuel Kant (1724-1804), a razão não é capaz de compreender todas as variegadíssimas esferas da vida humana, o que significa que o homem é a um só tempo seu senhor e seu carrasco e, esticando-se um pouco a longa corda do raciocínio filosófico, chega a emular Deus não em uma, mas em diversas circunstâncias durante sua vida, plena de momentos insanos cuja relevância só ele mesmo pode medir. Abe Lucas atravessa uma fase perigosa em “O Homem Irracional”, e Woody Allen, o perigoso diretor do filme, entende de armadilhas da insensatez como poucos.

Allen já o havia provado à larga em pérolas do cinema pensante a exemplo de “Celebridades” (1998) e “O Escorpião de Jade” (2001) e “Scoop — O Grande Furo” (2006), baseado no romance homônimo do britânico Evelyn Waugh (1903-1966), sem dúvida o melhor de todos estes, devido às gradações que o diretor faz entre a intimidade de seus protagonistas e o desejo de se chegar ao topo, louvável até certo ponto, e, no caso em tela, passível de ficar pelo caminho em nome de um sentimento que se quer grandioso.

“O Homem Irracional” talvez seja o longa em que Allen exercitou com mais audácia seu pendor de intelectual naturalmente polêmico, dando azo a uma crítica direta à justiça que o perseguiu em episódios de sua vida pessoal que, claro, descambaram para as páginas dos jornais, mas não o conseguiram abater. Pelo contrário: também foi a partir deles que veio a inspiração para o sujeito comum, brilhante mas atordoado, que encabeça a história.

O mais cínico dos verdugos permite que nos locupletemos com o confortável sofisma que esconde uma promessa qualquer de felicidade, sendo que o gênero humano está essencialmente condenado a perseguir a quimera de ser feliz, já que o mundo é, como na caverna de Platão (428 a.C – 348 a.C), só um simulacro das projeções muito íntimas de cada um, de conceitos eivados de nossas idiossincrasias as mais diversas, que por seu turno mantêm-nos mais e mais encafuados em nossos sonhos e delírios.

Abechega a Newport, em Rhode Island, rodeado pela paisagem aprazível da Nova Inglaterra americana numa tarde de outono, com a fotografia de Darius Khondji ressaltando o laranja vivo do céu e o verde ainda pálido da copa das árvores. A trilha sonora do Ramsey Lewis Trio ameniza e dá um ar farsesco ao extenso solilóquio que o professor de filosofia apresenta no prólogo, momento em que Joaquin Phoenix aproveita para, mediante gestos quase imperceptíveis como uma mão no cabelo ou um olhar meio oblíquo para estrada enquanto a plateia o acompanha, manifestar a inadequação que Abe ostenta com gosto.

Ele chega a seu novo local de trabalho quase como um pop star, recebe os cumprimentos de todos, inclusive da reitora da universidade, mas está sempre um tanto indiferente demais. Sua expressão muda de modo considerável quando, no coquetel de boas-vindas que preparam-lhe, colegas dizem que ficaram impressionados com um ensaio que publicara.

Allen inclui a Jill Pollard de uma Emma Stone no ponto como o diabo que tira o contido Abe dos trilhos de vez. O diretor-roteirista menciona um delito de Abe, e todas as novas possibilidades abrem-se para que se o tenha como herói ou pária. Ele tem suas preferências por um dos dois papéis, e as deixa claras. Para o ódio implacável de quem vê a vida como uma linha reta como certos pensadores contemporâneos.


Filme: O Homem Irracional
Direção: Woody Allen
Ano: 2015
Gêneros: Mistério/Crime
Nota: 9/10