O filme digno de Oscar, na Netflix, que vai querer assistir duas vezes Wilson Webb / Alcon Entertainment

O filme digno de Oscar, na Netflix, que vai querer assistir duas vezes

Desde a primeira cena, uma bruma de mal-estar paira sob os “Os Suspeitos”, um dos melhores thrillers criminais da última década.

Três anos antes do incomparável “A Chegada” (2016), decerto um dos filmes mais emblemáticos do novíssimo cinema do século 21, instigante, revolucionário, simbólico em tudo quanto concerna ao ímpeto do homem por progresso, por domínio da tecnologia, pela subjugação de formas de vida e, quem sabe, civilizações que julga inferiores, mas que o impingem-lhe uma subjugação mansa e cruel, Denis Villeneuve, um dos diretores mais refinados já vistos, cultiva seu talento para narrativas que projetam-se sobre si mesmas, num círculo um tanto claustrofóbico, apresentando possibilidades diversas para um mesmo arco. Aqui, o diretor vale-se de sutilezas de linguagem, diretamente proporcionais ao trabalho dos atores, um dos maiores trunfos do filme — mesmo que um grande equívoco ameace o resultado final —, para fazer do roteiro de Aaron Guzikowski uma experiência para muito além do fabuloso.

Um homem reza um Pai-Nosso numa floresta tomada de neve e, sem a menor evidência de um latente prurido moral, alveja um cervo. Keller Dover volta para casa levando o animal na carroceria da velha picape roxa que usa no trabalho de carpinteiro autônomo, e algumas cenas depois, quando se sabe que ele quer dar seu troféu a um casal amigo como presente de Dia de Ação de Graças, tudo vai se ajustando. Hugh Jackman transita bem por entre a masculinidade assumidamente caricata e a fraqueza que Dover tenta esconder a todo custo, e à medida que a história se levanta, resta claro que ele é uma vítima de seus preconceitos. No jantar com os Birch, depois de umas taças de vinho, Dover relaxa e consegue se divertir, mesmo sendo forçado a aguentar os solos desafinados do trompete de Franklin, o anfitrião vivido por Terrence Howard, nos acordes de Bruce Springsteen para “The Star-Spangled Banner”, o hino nacional americano. Ele e a esposa, Grace, papel de Maria Bello, levam os filhos Ralph, de Dylan Minnette, e Anna, de Erin Gerasimovich, para confraternizar com Eliza e Joy, as personagens de Zoë Soul e Kyla Drew Simmons, e enquanto a ação central toma parte na sala de jantar, o diretor oferece ao público elementos para supor que as crianças estão bem, aproveitando a festa em seu mundinho docemente privado. Quando Anna se dirige a Dover e Grace querendo ir buscar um tal apito vermelho na companhia de Joy, eles não veem problema. E suas vidas mudam para sempre.

Villeneuve elabora o segundo ato, em que o terror psicológico de “Os Suspeitos” desabrocha de uma vez, conferindo toda a liberdade para que Roger Deakins abuse da fotografia sempre muito apagada que torna-se ela mesma outra das personagens do filme. Mesmo no diner chinês iluminado por lâmpadas fluorescentes e repleto de lanternas vermelhas em que Loki toma uma refeição a cena parece quase lúgubre, e não poderia ser de outra forma: o detetive vivido por Jake Gyllenhaal, encarregado de apurar o desaparecimento das garotas, é sobrevivente de uma tragédia íntima. O passado misterioso e particularmente rico de Loki no orfanato em que crescera é o que o autoriza a inferir que o sequestrador até pode estar muito mais próximo do que todos pensam — especialmente Dover —, mas não é o homem certo. Alex Jones, o vizinho portador de deficiência intelectual encarnado com lirismo diabólico por Paul Dano, é eleito pelo pai de Anna como o predador a ser abatido, mas Loki, por óbvio, não morde a isca. Seu faro para detectar monstros de todas as formas nos tugúrios menos prováveis o faz encarniçar-se de Holly, a mãe adotiva de Alex. E então as pedras rolam.

Melissa Leo açambarca todos os olhares dando vida a uma psicopata bestial que libera seu lado mais perverso depois que o marido a abandona por uma mulher mais jovem. Há um enigma perturbador a envolver a figura da dona da casa 1.634, ancorado em ressentimento, exclusão social e fanatismo religioso, que Villeneuve somente arranha em favor da violência explícita que se dá nesse novo cenário. “Os Suspeitos” encontra a conclusão ao termo de sequências dispensáveis em que Bob Taylor, uma espécie de Alex Jones mais esperto, também sofre com falsas acusações, embora a composição de David Dastmalchian, muito breve, amenize o estrago. O lamentável mesmo é o desperdício criminoso de Viola Davis, que aparece bissextamente no transcurso de mais de duas horas e meia de projeção — e sem nunca dizer a que veio —, mesmo já tendo então se consolidado como uma das mais engenhosas intérpretes de Hollywood.


Filme: Os Suspeitos 
Direção: Denis Villeneuve 
Ano: 2013
Gêneros: Thriller/Crime
Nota: 8/10